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quarta-feira, 28 de maio de 2025

A VERDADE E ERRO DA TRADIÇÃO DO DOGMA

 COMO COMPREENDER A TEOLOGIA DE KARL RAHNER

Valdeci Fidelis D.Th

A primeira questão que se põe é quanto ao conteúdo da tradição, porque a fé cristã deve ser capaz de expressar o evento histórico (e salvífico) Jesus Cristo de modo tal que se torne acessível a todos os homens em todos os tempos de maneira inteligível. Foi esta questão que, no primeiro século, levou a Igreja primitiva em sua pregação apostólica a escrever os Evangelhos, o Novo Testamento. Aquele contexto diferencia o magistério hodierno da Igreja de sua função meramente ouvinte e serva da tradição dessa Igreja primitiva que foi inspirada por Deus ao lhe atribuir o dever das escrituras.

O espectro desse trabalho não permite relatar o progresso e o crescimento da noção católica de tradição, particularmente havidos entre os Concílios de Trento e o Vaticano II, o que não impede que se reconheça que, a partir do movimento da Reforma, a teologia católica tenha sido impelida a melhor justificar a sua Tradição[1].

Essa “justificação” passa pela observação de que com o decorrer do tempo as palavras podem perder ou ganhar sentidos, de acordo com a mudança do contexto[2]. Bastaria esse dado para que a literal repetição de doutrinas pelo magistério da Igreja não fosse suficiente para a explicitação de um fato pretérito. Eis aí o exemplo da Reforma. O ponto chave deste desafio é que a Igreja se ocupa com verdades de fé reveladas “por Deus para a nossa salvação” e a hierarquia da Igreja deve ter presente “o dever que tem de aprender a ouvir o Espírito de Deus e acatá-lo, reconhecendo o pluralismo legítimo na Igreja Católica”[3]. Eis aqui o preço da prudência humana na lentidão da contra-reforma.

2.2 – A tradição e a evolução do dogma

Passando do entendimento de tradição ao de evolução, no que respeita os dogmas de nossa fé, Rahner toma o exemplo paradigmático do dogma da Assunção de Maria aos céus. É na base do raciocínio de uma doutrina que nem sempre esteve presente, ou seja, nem sempre nos foi claramente explicitada, mas que se torna manifesta como obrigatória, que Rahner entende o termo “evolução”. Trata-se de algo que de alguma forma “chegou a ser” dentro da história do cristianismo, uma vez que, no começo da pregação do Evangelho, não existia tal como hoje[4].

Rahner admite um processo evolutivo espiritual, em que ele reconhece que há uma “unidade hierárquica”[5], na qual vigora a mesma lei de evolução que aplicamos aos demais seres vivos e, assim, busca diante da história que nos é reveladora do real o que, “sob a ação poderosa do Espírito, introduz o homem em toda verdade”, num processo que não é somente “único”, mas também constitui um “todo unitário”, que faz do cristianismo uma religião de fundo escatológico, que tem as vistas voltadas para o futuro[6].

Ao mesmo tempo em que para o homem moderno o futuro “já” começou, o cristão assevera que tal futuro “ainda” não chegou, “porque se a plenitude terrena é uma plenitude finita, na verdade não pode ser uma plenitude absoluta”[7]. Por isso a história em que se desvela a evolução do dogma é a história da progressiva manifestação do mistério que chega ao conhecimento do homem paulatinamente, independentemente de uma grande reflexão teológica, pelo poder do Espírito Santo.

Há certas leis da evolução do dogma que podem ser conhecidas a priori, considerando que essa evolução culmina como uma apelação à Igreja, como a última instância de julgamento dessa lei apriorística. Daí a permanente tensão gerada pelo perigo que se constitui em espremer esse “conhecimento” a partir do homem, ao invés de confiá-lo à “promessa do Espírito, e somente a Ele, que vela a fim de que esse perigo, sempre possível, não termine se convertendo em realidade”[8].

Rahner diz que podemos seguir princípios a serem respeitados num conhecimento dessa natureza. Um princípio é que se trata de “coisa óbvia”, posto que a verdade revelada é sempre a mesma. Expressa algo que a Igreja se apossa como parte da revelação a ela confiada, como objeto de sua fé incondicional, posse essa que se dá para sempre e em definitivo. Esse princípio limita o conteúdo do dogma porque exclui reflexos de objetivações de sentimentos, atitudes e mentalidades mutáveis e que se prendem a uma determinada época histórica e não a outra. O risco que existe em o homem adotar essas proposições que são frutos de uma época é o de incidir num erro que o desvie da verdade. Rahner vai chamar esse risco de que se possa adotar proposições que não sejam “adequadamente verdadeiras, de proposições “meio falsas” por não expressarem a realidade em questão e por suprimirem a diferença absoluta existente entre a “verdade e o erro”.

É difícil ao homem determinar o limite entre a proposição inadequada e falsa. Contudo, devemos considerar o fato de as nossas proposições sobre a realidade infinita de Deus serem sempre limitadas. Nesse sentido, as fórmulas com que expressamos a fé podem ser superadas, mantendo-se verdadeiras, ou seja, podemos substituí-las por outra que diga o mesmo e acrescente mais alguma coisa, que ainda assim diga “o mesmo”, porém com um novo matiz, desde que articulada ao novo conhecimento no sistema de coisas que já se sabe, já se sente e já se faz na experiência histórica e total de nossa vida, o que é o sentido que todo ser humano tem de tradição.

2.3 – A evolução do dogma e a realidade da palavra

Até aqui tratamos de exprimir a mesma realidade, de outra maneira, o que não implica no conceito que temos de progresso, ou como o diz Rahner: no aumento simultâneo de um “plus” quantitativo de conhecimento.

É a Igreja trazendo no tempo a mudança do que permanece o mesmo, não significando que tal mudança seja abandono da perspectiva anterior, o que é típico das coisas materiais, mas não das coisas espirituais[9].

Por isso, o mistério da Trindade divina, nas expressões de fé dos Concílios de Nicéia e de Florença, não se pode tomar como ensaios teológicos, porque tais expressões não admitem contradição entre si. Para o homem em particular, há uma diferença entre uma proposição anterior e outra posterior, o que de fato existe, no que chamamos de evolução do dogma, como comprova o modo efetivo de agir da Igreja na pregação de sua doutrina.

É nesse sentido que revelação é fruto de um diálogo histórico entre Deus e o homem. E a comunicação da Igreja refere-se a este acontecer, ao diálogo que se encaminha a um ponto final, no qual o acontecer e, em conseqüência, a sua comunicação, chega ao seu ponto máximo e, com ele, à sua conclusão[10].

Daí o núcleo central do cristianismo que afirma a revelação como acontecimento salvífico, acontecimento que implica uma comunicação de verdades que, na história da salvação, alcançou em Cristo seu ponto máximo, incapaz de ser superado. Por isso o alerta de Rahner de que o cristianismo não é uma fase da história universal substituível por outro “éon” intramundano, porque todos os tempos surgem e desaparecem, passam a uma distância infinita da eternidade autêntica que permanece no mais além. Tudo o que nasce já traz a morte em si: culturas, povos, reinos, sistemas culturais, políticos, econômicos[11].

Antes de Cristo, o mesmo agir no mundo do Deus que se revelara, estava “aberto”. Este agir criava tempos, planos sucessivos de salvação, todavia não se sabia como Deus responderia definitivamente ao homem, se sua última palavra seria de ira ou de amor. Agora está dada a realidade definitiva que não pode ser superada e nem substituída; o inextinguível e irrevogável presente de Deus no mundo como salvação, como amor e perdão, como comunicação ao mundo dá mais íntima realidade divina e de sua vida trinitária: Jesus Cristo.

Com isso a revelação está “encerrada” por estar “aberta” à plenitude de Deus, que se encontra “ocultamente presente em Cristo”. A clausura da revelação, assim o diz Rahner, não é uma expressão negativa, mas positiva, posto que é puro “sim”, é a conclusão que inclui tudo e nada exclui da plenitude compreensiva.

Unida no “éon” de Jesus Cristo a palavra se une ao que já está presente na mensagem e a Igreja crente possui o que crê: Cristo, seu Espírito, o penhor da vida, o vigor da eternidade, realidade esta que não pode ser apreendida “extra muros” da palavra.

Isso nos leva a unir de modo indivisível a palavra e a realidade mesma: uma na outra, nenhuma sem a outra. A luz do Espírito e da fé se faz valer no próprio resultado, que é a nossa realidade[12].

De outro modo, é importante dizer que a luz da fé e o impulso do Espírito não se deixam objetivar de per si num olhar separado do objeto da fé, por que o objeto da fé não é mero objeto passivo, mas é o princípio mediante o qual o mesmo Espírito é captado como objeto.

Daí ser possível explicar a evolução do dogma realmente acontecida e legítima, afastando o perigo de rebaixar ao nível de nossas pobres operações mentais, meramente humanas, à realidade superior e mais ampla do conhecimento da fé na dependência do inferior e secundário, na dependência da teologia científica, que também é um elemento interno do conhecimento da fé, mas de maneira alguma sua essência adequada

Seguindo Rahner, existe uma evolução do dogma, que tem que existir e acontecer num “contato vivo com a realidade revelada”. Entre uma expressão desse conhecimento e outra expressão desse mesmo conhecimento que é dado da realidade, há a possibilidade de uma elaboração lógica mais rigorosa, ou seja: a realidade contida nesses conhecimentos (conhecimento fundante e o conhecimento fundado) está relacionada entre eles, supondo-se que “o conhecimento que evoluiu” seja uma autêntica verdade dogmática, sob a garantia do magistério de que a nova proposição reproduz exatamente o sentido da antiga, ou seja, o mesmo que a proposição original, que diz também o que Deus revelou.

Conclusão

Assim é que se crê devido ao testemunho do próprio Espírito de Deus, com fé divina. Isto é dogma e não apenas teologia. Com isso não se elimina uma evolução teológica, mas se afirma que existe uma evolução dogmática própria que não é resultado de um conhecimento novo, dedutivo, mas que parte de várias proposições de fé presentes do conhecimento “revelado” por Deus do sentido rigoroso da “fé divina”.

Rahner recorda que quando um homem fala, jamais alcança plenamente as conseqüências reais que se deduzem necessariamente de suas palavras. “Nós falamos sempre “por cima de nossa própria cabeça”. Tudo o que propriamente dizemos não é a expressão plena do que realmente queremos dizer”. Mas, o grande alerta do autor é que quando Deus fala, não sucede o mesmo. Por isso Deus mesmo diz o que só na história viva do que foi dito se desvela como dito, ou seja, não é o que Deus pronunciou em seu sentido proposicional imediato, mas o que “comunicou” e, por isso, pode ser crido como saber Seu.

Nessa linha, pode-se afirmar que somente é inspirado aquilo que o autor humano quis dizer, o que implica que podem ter sido comunicadas mais coisas, mesmo tendo-se Deus como autor literário da Escritura. Podemos estar diante de outros mensageiros, como os profetas, como portadores originários e não literários da revelação – que encontram nos apóstolos sua expressão inspirada na comunicação de uma mensagem de que não são os autores. Transmitem, assim, os apóstolos, uma mensagem não própria, mas simplesmente a mensagem de Deus. Por isso, sua comunicação pode superar o que eles souberam explicitamente dizer a respeito da mesma mensagem.

Rahner imagina o saber consciente pleno da fé dos apóstolos e da comunidade primitiva, sem cair num anacronismo a-histórico. Diz que é pouco o que se poderia saber a respeito, o que na ocasião não era entendido e nem o poderia ser, mas também diz que se sabia “tudo” porque se apreendera vitalmente a realidade total da ação salvadora de Deus e nela se vivia espiritualmente. A herança que os apóstolos transmitem não são proposições, mas seu espírito, o Espírito Santo de Deus, a realidade verdadeira do que eles experimentaram em Cristo e por isso chamamos de perfectiva, já que nos reorienta sempre no caminho que volta ao Senhor.

Essa successio apostolica, no sentido pleno e total da palavra transmite à Igreja pós-apostólica, precisamente no que se refere ao conhecimento da fé, não só um conjunto de proposições, mas a experiência viva: o Espírito Santo, o Senhor sempre presente na Igreja, com a vitalidade da verdade sem duplicidade[14].

Portanto, para Rahner, podemos nos dedicar à investigação e reflexão teológica, com relação à Assunção, sem que o resultado redunde em mera teologia, porque o magistério da Igreja dispõe de um critério superior ao do teólogo isolado. A Igreja possui o órgão para perceber o que aparece como resultado do trabalho teológico, que é mais do que mero resultado do trabalho mental humano, porque é a própria palavra de Deus, envolta noutra forma, numa nova articulação e explicação. É o magistério, assistido pelo Espírito, que tem dupla função: garantir como verdadeiro o resultado do trabalho teológico, inclusive quando tal trabalho não seja provável, podendo, ainda, garantir que o resultado não é somente verdadeiro, mas também Palavra de Deus.

Nesse sentido ele acresce que os “novos dogmas marianos hão de ser vistos no conjunto da compreensão cristã da fé”. Isto vale dizer que apenas se tomarmos por substância do cristianismo o que Rahner chama de encarnação do próprio Logos eterno em nossa carne que, partindo desta fé e de acordo com o testemunho escriturístico, deve-se dizer que

Maria não representa apenas episódio individual em uma biografia de Jesus Cristo, episódio carente de interesse teológico, mas que ela, nesta história da salvação, é realidade histórico-salvífica explícita. Se lermos Mateus, Lucas e João e se rezamos o símbolo apostólico, onde professamos a fé em Jesus, o Logos divino, que nasceu da Virgem Maria, com isso estamos a dizer – ainda que em fórmula muito simples – que Maria foi a mãe de Jesus não só em sentido biológico, mas como alguém que assume função bem determinada, e até mesmo única, nessa história da salvação oficial e pública. No símbolo apostólico, Maria ocupa lugar que nem sequer Lutero lhe contestou, embora ele tenha acreditado encontrar no culto mariano daquela época medieval tardia tendências que ameaçavam ou negavam o sola gratia[15]

Por isso, Rahner resume a essência de seu pensamento asseverando que:

No dogma não se diz mais nada do que isso: Maria é a redimida de maneira radical. Partindo-se daí, torna-se, na verdade, coisa muito óbvia o conceito básico, segundo o qual Maria – como quem em sua maternidade pessoal e não apenas biológica, acolheu na fé a salvação do mundo – constitui também o caso mais alto e mais radical de realização da salvação, de fruto da salvação, da concepção da salvação. Tanto na cristandade oriental como na ocidental isso foi algo tido como sumamente óbvio, ainda que nem sempre se tenha apresentado neste grau de reflexão explícita. E, a partir daí, é relativamente fácil compreender o que queremos dizer, quando falamos de “imaculada conceição” e “assunção aos céus”, sem que se tornem dogmas que fossem de modo adventício acrescentados à substância real última do cristianismo. 

PAG FONTE 115




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