Entrevista: A paz é um tema em evidência nas Escrituras Sagradas. Deus é adjetivado como o Deus da paz (Rm. 15.33; 16.20; 1 Co.14.33), o seu reino é um reino de justiça, alegria e paz (Rm. 14.17) e Jesus é chamado de príncipe da paz (Is. 9.6). Diante de um Deus que se revela como um Deus de paz é natural que em vários momentos a Bíblia encoraje o povo de Deus a buscar a paz, como orienta o salmista: “Aparta-te do mal e faze o bem; procura a paz e segue-a” (Sl. 34:14).

Na verdade, a paz aparece no texto sagrado não apenas como uma característica do povo de Deus ou como algo que se deva buscar, mas sim como fruto do Espírito (Gl. 5.22), ou seja, a paz frutifica naturalmente na vida daqueles que se entregam a Jesus e que buscam viver de acordo com os seus ensinos. Não é à toa que em seu famoso Sermão do Monte Jesus se refere a seus seguidores como pacificadores (Mt. 5.9).

Se o povo de Deus é instigado a buscar viver em paz com todos, onde está esse povo numa sociedade cada vez mais fragmentada, dividida e raivosa? O que estão fazendo os pacificadores em tempos marcados pela intolerância e pelo discurso de ódio? Em dias de tanta desinformação e divulgação de fake-news, o que estão proclamando os que possuem a missão de proclamar boas-novas e paz?

Já vimos que a paz é intrínseca ao evangelho e ao povo de Deus. Mas basta uma rápida pesquisa na internet e você encontrará dezenas de resultados relacionando evangélicos com discursos de ódio. Claro que não podemos tirar conclusões de uma rápida busca na web, no entanto, são sinais que precisam ser analisados e discutidos.

É importante destacar que o “discurso de ódio é a expressão do pensamento que desqualifica, humilha e inferioriza indivíduos e grupos sociais caracterizados e estigmatizados com objetivo de propagar a discriminação desrespeitosa para com todo aquele que possa ser considerado “diferente”, seja em razão de sua etnia, religião, orientação sexual, condição econômica, gênero, cor, deficiência mental ou física”.[i]

Em um bate-papo online abordando a questão da construção de paz em tempos de polarização, o teólogo Valdir Steuernagel comenta que a cultura do ódio se alimenta quando alguém superestima a sua bondade e subestima a bondade do outro, pois, segundo ele, é muito mais fácil criticar a miséria alheia do que deixar o próprio nariz atento ao esgoto que carregamos em nosso coração.

Conversamos com o teólogo e escritor Maurício Zágari sobre como o discurso de ódio se manifesta no meio evangélico, como as Escrituras respondem a isso e como podemos agir biblicamente para combater discursos que causam divisão na sociedade e nas igrejas. Confira a entrevista.

Como você conceitua o discurso de ódio e como percebe esse fenômeno no meio evangélico?

Maurício Zágari – Existem diferentes definições sociológicas para “discurso de ódio”, mas eu, pessoalmente, o defino como aquele que se posiciona de modo intolerante, surdo e agressivo com relação a quem pensa diferente. Esse discurso se tornou muito presente no meio evangélico nos últimos anos e se manifesta no posicionamento de temas ligados, principalmente, a crenças doutrinárias, teológicas, políticas e/ou ideológicas. Dentre os exemplos, vemos argumentações como “Não pode ser cristão e ser de esquerda/direita”, “Arminianismo não é cristianismo”, “Temos de acabar com o pentecostalismo” e tantos outros.

Por que o “discurso de ódio” está em destaque em nossos dias?

Maurício Zágari – O advento das redes sociais deu voz a qualquer pessoa, sem a necessidade de ter uma grande estrutura de comunicação por trás, como ocorria até bem poucos anos atrás. Com isso, todo esse ódio tornou-se visível como nunca antes. O ódio pelo diferente e pelo divergente sempre houve, mas, com as mídias sociais, ganhou espaço para se fazer ver e ecoar a sua voz.

O evangelho confronta o pecador. É possível confrontar sem ofender ou desrespeitar?

Maurício Zágari – É perfeitamente possível, basta seguir o que Paulo nos ordena em 2Timóteo 2.24-26: “O servo do Senhor não deve viver brigando, mas ser amável com todos, apto a ensinar e paciente. Instrua com mansidão aqueles que se opõem, na esperança de que Deus os leve ao arrependimento e, assim, conheçam a verdade. Então voltarão ao perfeito juízo e escaparão da armadilha do diabo, que os prendeu para fazerem o que ele quer”. Perceba: o confronto não se dá por ataques e ódio, mas por ensino e instrução, e isso com amabilidade, paciência e mansidão.

Com a motivação de “defender os valores cristãos”, alguns podem acabar escorregando no discurso de ódio? Se sim, como evitar isso?

Maurício Zágari – Não só podem, como muitos têm feito isso em alta voz e à plena luz do dia. O meio de evitar isso é começar a agir como os mártires do Coliseu e não como cruzados — em outras palavras, como verdadeiros cristãos.

Alguns usam a passagem de 1 Pedro 3.15 para travar debates acalorados e “defender o evangelho”. Essa passagem nos dá base para isso? Aliás, o evangelho precisa ser defendido?

Maurício Zágari – 1Pedro 3.15 diz que devemos estar preparados para explicar a nossa esperança. Explicações podem ser dadas sem conflitos, atritos ou defesas. O texto fala de uma exposição, e não de uma imposição, de verdades. Uma análise sistemática desse conceito confirma que o modo de fazer isso é com paciência e mansidão e não com agressões e ódio.

Quanto ao evangelho precisar de defesa, basta vermos as palavras de Cristo diante de Pilatos. Ali está o conteúdo e o modo de expor esse conteúdo que um pregador do evangelho deve adotar.

Você já foi alvo de discurso de ódio? Se sim, como lidou com a situação e o que você recomenda para quem se sentir vítima de situações semelhantes?

Maurício Zágari – Antes de ser alvo, preciso dizer que já fui promotor de discurso de ódio. Anos atrás, eu convivi num ambiente muito sectário, que estimulava esse tipo de comportamento diabólico. Foi necessário que eu passasse por um longo processo de compreensão das Escrituras e renovação da mente para perceber que eu estava usando as armas do diabo para defender Deus. Eu pecava “em nome de Jesus”. Isso, óbvio, é o suprassumo da contradição e fico feliz por o Senhor me ter aberto os olhos e me feito amadurecer em minha espiritualidade.

Hoje, como sempre evito entrar por discussões do tipo, sou alvo com frequência de discurso de ódio. Por evitar me identificar com os extremos agressivos, sou chamado com constância de “em cima do muro”, “crente morno”, “fascista”, esquerdopata”, “capitalista”, “comunista”, “hipócrita” e coisas do tipo. A forma de lidar com isso é não pôr lenha na fogueira, mas pacificar, com mansidão e graça. E, se você vir que o diálogo é impossível, encerrá-lo, desejando a paz a quem se opõe.

Os evangélicos precisam combater os discursos de ódio? Como?

Maurício Zágari – Sim, pois o discurso de ódio não encontra lugar no evangelho do Príncipe da Paz. Fomos chamados para o amor, a graça, a misericórdia e a compaixão e não para o ódio. A forma de combatê-lo é, principalmente, não se deixando enredar por ele e fazendo o que estou fazendo aqui, à luz de 2Timóteo 2.24-26: ensinar e instruir, com mansidão, amabilidade e paciência, na esperança de que Deus leve os odiosos ao arrependimento.

Qual a sua receita para vivermos um 2022 com mais paz e menos ódio?

Viver de fato o evangelho de nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo, e não uma caricatura belicosa da mensagem da cruz.

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O evangelho da paz e o discurso de ódio

Essas e outras questões foram abordadas por pensadores cristãos no livro “O evangelho da paz e o discurso de ódio”, organizado por nosso entrevistado, Maurício Zágari, publicado pela Godsbook e Thomas Nelson Brasil. A tese da obra reconhece que profundos abismos político-ideológicos tomaram conta do país, dividiram nossa sociedade, afastaram amigos, provocaram ofensas entre familiares, configurando um cenário no qual o ódio passou a dominar muitos corações. O texto de apresentação do livro afirma que os cristãos também foram contaminados pelo espírito dos tempos e muitos seguidores do Príncipe da Paz passaram a adotar uma mentalidade agressiva e um discurso de ódio. Diante deste cenário, o livro apresenta valiosas reflexões sobre o problema da falta de paz e unidade no discurso cristão.


Por Phelipe Reis | Jornalista e colaborador de conteúdo para o site Sepal.

[i] Proselitismo religioso e discurso de ódio