O primeiro rei de Israel.
Este capítulo é baseado em 1 Samuel 8-12. O governo de Israel era administrado em nome e pela autoridade de Deus. O trabalho de Moisés, o dos setenta anciãos, dos príncipes e juízes, era simplesmente pôr em execução as leis que Deus dera; não tinham eles autoridade para legislar para a nação. Esta foi, e continuou a ser a condição da existência de Israel como nação. De tempos em tempos homens inspirados por Deus eram enviados para instruírem o povo, e guiá-lo na execução das leis. O Senhor previu que Israel desejaria um rei, mas não consentiu em uma mudança nos princípios sobre os quais foi fundado o Estado. O rei devia ser representante do Altíssimo. Deus devia ser reconhecido como o Líder da nação, e Sua lei executada como a lei suprema do país. Quando, inicialmente, os israelitas se estabeleceram em Canaã, reconheciam os princípios da teocracia, e a nação prosperou sob o governo de Josué. Mas o aumento da população e o intercâmbio com outras nações acarretaram uma mudança. O povo adotou muitos dos costumes dos seus vizinhos gentílicos, e assim sacrificou, em grande proporção, seu próprio caráter peculiar e santo. Gradualmente perderam sua reverência para com Deus, e deixaram de apreciar a honra de ser Seu povo escolhido. Atraídos pela pompa e ostentação dos reis gentílicos, cansaram-se de sua própria simplicidade. Rivalidades e inveja surgiram entre as tribos. Dissensões internas debilitaram-nas; estavam continuamente expostas à invasão de seus adversários gentios, e o povo começava a crer que, a fim de manter sua posição entre as nações, deveriam as tribos unir-se sob um forte governo central. Afastando-se da obediência à lei de Deus, desejaram libertar-se do governo de seu divino Soberano; e assim o pedido para terem um rei generalizou-se por todo o Israel. Desde os dias de Josué o governo nunca fora dirigido com tão grande sabedoria e êxito como sob a administração de Samuel. Investido divinamente com a tríplice função de juiz, profeta e sacerdote, trabalhara ele com incansável e desinteressado zelo pelo bem-estar de seu povo, e a nação prosperara sob sua sábia administração. A ordem havia sido restabelecida, promovida a piedade, e o espírito de descontentamento impedido durante aquele tempo. Mas, com o avançar dos anos, o profeta foi obrigado a repartir com outros os cuidados do governo, e ele designou seus dois filhos para agirem como seus auxiliares. Enquanto Samuel continuava com os deveres de seu ofício em Ramá, os moços se localizaram em Berseba para administrarem a justiça entre o povo, próximo da fronteira sul do país. Foi com inteiro apoio da nação que Samuel designara seus filhos para o ofício; mas eles não se mostraram dignos da escolha de seu pai. Havia o Senhor, por meio de Moisés, dado instruções especiais a Seu povo, a fim de que os príncipes de Israel julgassem retamente, tratassem com justiça da viúva e do órfão, e não recebessem suborno. Mas os filhos de Samuel “se inclinaram à avareza, e tomaram presentes, e perverteram o juízo”. Os filhos do profeta não atenderam aos preceitos que ele procurara gravar em suas mentes. Não imitaram a vida pura e abnegada de seu pai. A advertência feita a Eli não exercera sobre a mente de Samuel a influência que deveria ter exercido. Ele fora até certo ponto demasiado condescendente com seus filhos, e o resultado foi visível no caráter e na vida deles. A injustiça desses juízes causava muito descontentamento, e forneceu-se assim um pretexto para se insistir na mudança que havia muito era secretamente desejada. “Todos os anciãos de Israel se congregaram, e vieram a Samuel, a Ramá, e disseram-lhe: Eis que já estás velho, e teus filhos não andam pelos teus caminhos. Constitui-nos, pois, agora um rei sobre nós, para que ele nos julgue, como o têm todas as nações”. 1 Samuel 8:3-5. Os casos de abusos praticados entre o povo não foram referidos a Samuel. Houvesse se tornado conhecida dele a má conduta de seus filhos, e ele os teria retirado sem demora; mas isto não era o que os suplicantes desejavam. Samuel viu que o seu objetivo real era o descontentamento e o orgulho, e que seu pedido era o resultado de um propósito deliberado e decidido. Nenhuma queixa fora feita contra Samuel. Todos reconheciam a integridade e sabedoria de sua administração; mas o idoso profeta considerou o pedido como uma censura a si, e um esforço direto para o pôr de parte. Não revelou, entretanto, os seus sentimentos; não proferiu qualquer exprobração, mas levou a questão ao Senhor em oração, e apenas dEle procurou conselho. E o Senhor disse a Samuel: “Ouve a voz do povo em tudo quanto te disserem, pois não te têm rejeitado a ti, antes a Mim Me têm rejeitado para Eu não reinar sobre eles. Conforme a todas as obras que fizeram desde o dia em que os tirei do Egito até ao dia de hoje, pois a Mim Me deixaram, e a outros deuses serviram, assim também te fizeram a ti”. 1 Samuel 8:7, 8. O profeta foi reprovado por ofender-se com a conduta do povo em relação a si, individualmente. Não haviam manifestado desrespeito para com ele, mas para com a autoridade de Deus, que havia designado os príncipes de Seu povo. Aqueles que desprezam e rejeitam o fiel servo de Deus, mostram desdém, não meramente ao homem, mas ao Senhor que o enviou. São as palavras de Deus, Suas reprovações e conselhos, o que é anulado; é Sua autoridade que é rejeitada. Os dias da máxima prosperidade de Israel foram aqueles em que reconheciam a Jeová como seu Rei — em que as leis e governo que tinham sido estabelecidos eram considerados como superiores aos de todas as outras nações. Moisés declarara a Israel com relação aos mandamentos de Deus: “Esta será a vossa sabedoria e o vosso entendimento perante os olhos dos povos, que ouvirão todos estes estatutos, e dirão: Este grande povo só é gente sábia e entendida”. Deuteronômio 4:6. Mas, afastando-se da lei de Deus, os hebreus deixaram de se tornar o povo que Deus desejava fazer deles, e então todos os males que foram o resultado de seu próprio pecado e desatino atribuíram ao governo de Deus. Tão completamente cegos se haviam tornado pelo pecado. Tinha o Senhor, mediante os Seus profetas, predito que Israel seria governado por um rei; mas não se segue que esta forma de governo fosse a melhor para eles, ou de acordo com Sua vontade. Ele permitiu que o povo seguisse sua própria escolha, porque se recusaram a ser guiados por Seu conselho. Oséias declara que Deus lhes deu um rei em Sua ira. Oséias 13:11. Quando os homens preferem seguir o seu próprio caminho, sem buscar conselho de Deus, ou em oposição à Sua vontade revelada, muitas vezes Ele satisfaz seus desejos, a fim de que, por meio da amarga experiência que se segue, possam ser levados a compenetrar-se de sua loucura e a arrepender-se de seu pecado. O orgulho e a sabedoria humana demonstrar-se-ão um guia perigoso. Aquilo que o coração deseja contrário à vontade de Deus, verificar-se-á, no fim, que é uma maldição em vez de bênção. Deus desejava que Seu povo apenas olhasse para Ele como seu legislador e fonte de força. Sentindo sua dependência de Deus, seriam constantemente atraídos para mais perto dEle. Tornar-se-iam elevados e enobrecidos, adaptados ao alto destino a que Ele os chamara como Seu povo escolhido. Mas, quando fosse posto sobre o trono um homem, isto tenderia a desviar de Deus a mente do povo. Eles confiariam mais na força humana, e menos no poder divino, e os erros de seu rei levá-los-iam ao pecado, e separariam a nação de Deus. Samuel foi instruído a satisfazer o pedido do povo, mas adverti-los da desaprovação do Senhor, e também dar a conhecer qual seria o resultado de sua conduta. “E falou Samuel todas as palavras do Senhor ao povo, que lhe pedia um rei.” Expôs-lhes fielmente os encargos que seriam postos sobre eles, e mostrou o contraste entre tal estado de opressão e sua condição presente, relativamente livre e próspera. Seu rei imitaria de outros a pompa e o luxo, para sustentar os quais seriam necessários pesados impostos sobre suas pessoas e propriedades. O que melhor havia de entre seus moços ele exigiria para o seu serviço. Tornar-se-iam cocheiros, cavaleiros e batedores diante dele. Deveriam preencher as fileiras de seu exército, e exigir-se-lhes-ia cultivar seus campos, ceifar suas plantações, e fabricar implementos de guerra para o seu serviço. As filhas de Israel seriam tomadas como confeiteiras e padeiras para a casa real. Para manter sua condição régia, apoderar-se-ia do melhor de suas terras, concedidas ao povo pelo próprio Jeová. Os mais valiosos de seus servos, igualmente, e de seu gado, ele tomaria e os empregaria “no seu trabalho”. Além de tudo isto o rei exigiria um dízimo de toda a sua receita, dos lucros de seu trabalho, ou dos produtos do solo. “Vós lhe servireis de criados”, concluiu o profeta. “Então naquele dia clamareis por causa de vosso rei, que vós houverdes escolhido; mas o Senhor não vos ouvirá naquele dia”. 1 Samuel 8:10-18. Por mais pesadas que se achassem suas exigências, uma vez estabelecida a monarquia, não a poderiam eles depor à vontade. Mas o povo deu a resposta: “Não, mas haverá sobre nós um rei. E nós também seremos como todas as outras nações; e o nosso rei nos julgará, e sairá adiante de nós, e fará as nossas guerras.” “Como todas as outras nações”. 1 Samuel 8:19, 20. Os israelitas não compreendiam que serem neste sentido diferentes de outras nações era um privilégio e bênção especiais. Deus havia separado os israelitas de todos os outros povos, para deles fazer Seu tesouro peculiar. Eles, porém, não tomando em consideração esta alta honra, desejaram avidamente imitar o exemplo dos gentios! E ainda o anelo de conformar-se às práticas e costumes mundanos existe entre o povo professo de Deus. Afastando-se eles do Senhor, tornam-se ambiciosos dos proveitos e honras do mundo. Cristãos acham-se constantemente procurando imitar as práticas dos que adoram o deus deste mundo. Muitos insistem em que, unindo-se aos mundanos e conformando-se aos seus costumes, poderiam exercer uma influência mais forte sobre os ímpios. Mas todos os que adotam tal método de proceder, separam-se desta maneira da Fonte de sua força. Tornando-se amigos do mundo, são inimigos de Deus. Por amor à distinção terrestre, sacrificam a indizível honra a que Deus os chamou, honra esta de mostrarem os louvores dAquele que nos chamou das trevas para a Sua maravilhosa luz. 1 Pedro 2:9. Com profunda tristeza Samuel escutou as palavras do povo; mas o Senhor lhe disse: “Dá ouvidos à sua voz, e constitui-lhes rei”. 1 Samuel 8:22. O profeta cumprira o seu dever. Apresentara fielmente o aviso, e este fora rejeitado. Com pesaroso coração despediu o povo, e retirou-se a fim de preparar a grande mudança no governo. A vida de pureza e devoção abnegada de Samuel era uma repreensão perpétua tanto para os sacerdotes e anciãos que só cuidavam de si, como para a congregação de Israel, orgulhosa e sensual. Embora não exibisse pompa nem fizesse ostentação, seus labores traziam o cunho do Céu. Ele foi honrado pelo Redentor do mundo, sob cuja guia governou a nação hebréia. Mas o povo se cansara de sua piedade e devoção; desprezaram sua humilde autoridade, e o rejeitaram preferindo um homem que os governasse como rei. No caráter de Samuel vemos refletida a semelhança de Cristo. Foi a pureza da vida do Salvador que provocou a ira de Satanás. Aquela vida era a luz do mundo, e revelava a depravação oculta no coração dos homens. Foi a santidade de Cristo que suscitou contra Ele as mais cruéis paixões dos que com um coração falso professavam a piedade. Cristo não veio com a opulência e honras da Terra; contudo as obras que realizava mostravam possuir Ele poder maior do que de qualquer príncipe humano. Os judeus esperavam que o Messias viesse a quebrar o jugo do opressor; todavia, acariciavam os pecados que lhes haviam ligado esse jugo ao pescoço. Houvesse Cristo encoberto os pecados deles e aplaudido a sua piedade, e O teriam aceito como seu rei; mas não quiseram suportar Sua destemida repreensão aos seus vícios. A beleza de um caráter em que a benevolência, a pureza e a santidade reinavam supremas, que não alimentava ódio a não ser ao pecado, eles a desprezaram. Assim tem sido em todas as épocas do mundo. A luz do Céu traz condenação sobre todos os que se recusam a andar nela. Quando repreendidos pelo exemplo daqueles que odeiam ao pecado, tornam-se os hipócritas, agentes de Satanás para afligir e perseguir os fiéis. “Todos os que piamente querem viver em Cristo Jesus padecerão perseguições”. 2 Timóteo 3:12. Se bem que tivesse sido predita na profecia a forma de governo monárquica para Israel, Deus Se reservara o direito de lhes escolher o rei. Os hebreus respeitaram a autoridade de Deus até ao ponto de deixarem a seleção inteiramente com Ele. A escolha recaiu sobre Saul, filho de Quis, da tribo de Benjamim. As qualidades pessoais do futuro líder eram de maneira que satisfaziam aquele orgulho íntimo que inspira o desejo de terem um rei. “Entre os filhos de Israel não havia outro homem mais belo do que ele”. 1 Samuel 9:2. De porte nobre e digno, na flor da idade, garboso e alto, tinha ele a aparência de alguém que nascera para governar. No entanto, com tais atrações externas, Saul era desprovido daquelas qualidades mais elevadas que constituem a verdadeira sabedoria. Não tinha aprendido em sua mocidade a dominar suas paixões temerárias e impetuosas; nunca sentira o poder renovador da graça divina. Saul era filho de um poderoso e rico chefe; todavia em conformidade com a simplicidade daqueles tempos, estava empenhado com seu pai nos humildes deveres de lavrador. Tendo-se alguns dos animais de seu pai extraviado nas montanhas, Saul foi com um servo à busca deles. Durante três dias fizeram infrutíferas buscas, quando, não estando eles longe de Ramá, a residência de Samuel, o servo propôs que indagassem do profeta a respeito dos animais que faltavam. “Ainda se acha na minha mão um quarto dum siclo de prata”, disse ele, “o qual darei ao homem de Deus, para que nos mostre o caminho”. 1 Samuel 9:8. Isso estava de acordo com o costume daqueles tempos. Uma pessoa que se aproximasse de um superior em posição social ou função, dava-lhe um pequeno presente, em sinal de respeito. Aproximando-se eles da cidade, encontraram-se com algumas moças que tinham vindo tirar água, e indagaram delas acerca do vidente. Em resposta souberam que uma cerimônia religiosa estava para ocorrer, que o profeta já havia chegado, que deveria haver uma oferta no “lugar alto”, e depois daquilo um sacrifício. Uma grande mudança se havia realizado durante a administração de Samuel. Quando o chamado de Deus veio a princípio a ele, os serviços do santuário eram tidos em desdém. “Os homens desprezavam a oferta do Senhor”. 1 Samuel 2:17. Agora, porém, o culto de Deus era mantido por todo o país, e o povo manifestava interesse nos serviços religiosos. Não havendo trabalhos ministeriais no tabernáculo, os sacrifícios eram naquele tempo oferecidos em outra parte; e as cidades dos sacerdotes e levitas, aonde o povo acorria a receber instrução, foram escolhidas para este fim. Os pontos mais altos nessas cidades eram usualmente escolhidos como o lugar do sacrifício, e daí o serem chamados lugares altos. À porta da cidade, Saul foi defrontado pelo próprio profeta. Deus tinha revelado a Samuel que naquela ocasião o escolhido rei de Israel se apresentaria diante dele. Estando em face um do outro, disse o Senhor a Samuel: “Eis aqui o homem de quem já te tenho dito. Este dominará sobre o Meu povo.” Ao pedido de Saul — “Mostra-me, peço-te, onde está aqui a casa do vidente”, Samuel replicou: “Eu sou o vidente.” Assegurando-lhe também que os animais perdidos tinham sido encontrados, insistiu com ele para que ficasse e assistisse à festa, dando ao mesmo tempo alguma indicação do grande destino que o esperava: “Para quem é todo o desejo de Israel? porventura não é para ti, e para toda a casa de teu pai?” O coração daquele que ouvia fremiu com as palavras do profeta. Não podia perceber senão algo da significação das mesmas; pois o pedido de um rei se tornara o assunto de absorvente interesse à nação inteira. Todavia, depreciando-se modestamente, Saul replicou: “Porventura não sou eu filho de Benjamim, da mais pequena das tribos de Israel? E a minha família a mais pequena de todas as famílias da tribo de Benjamim? Por que, pois, me falas com semelhantes palavras?” 1 Samuel 9:18-21. Samuel conduziu o estranho ao local da assembléia, onde estavam reunidos os homens principais da cidade. Entre eles, por determinação do profeta, o lugar de honra foi dado a Saul, e no festim o quinhão mais escolhido foi posto diante dele. Terminadas as cerimônias, Samuel levou o hóspede à sua casa, e ali, no eirado, conversou com ele, apresentando os grandes princípios sobre os quais o governo de Israel fora estabelecido, e procurando assim prepará-lo até certo ponto para o seu elevado cargo. Quando Saul partiu, cedo na manhã seguinte, o profeta saiu com ele. Tendo atravessado a cidade, mandou que o servo passasse adiante. Então ordenou a Saul que parasse a fim de receber uma mensagem a ele enviada por Deus. “Então tomou Samuel um vaso de azeite, e lho derramou sobre a cabeça, e o beijou, e disse: Porventura te não tem ungido o Senhor por capitão sobre a Sua herdade?” Como prova de que isto era feito por autorização divina, predisse os incidentes que ocorreriam em sua viagem para casa, e afirmou a Saul que ele seria habilitado pelo Espírito de Deus para o cargo que o esperava. “O Espírito do Senhor se apoderará de ti”, disse o profeta, “e te mudarás em outro homem. E há de ser que, quando estes sinais te vierem, faze o que achar a tua mão, porque Deus é contigo.” Tendo seguido Saul o seu caminho, tudo aconteceu conforme dissera o profeta. Perto dos termos de Benjamim foi informado de que os animais perdidos tinham sido achados. Na planície de Tabor encontrou três homens que iam adorar a Deus em Betel. Um deles levava três cabritos para o sacrifício, outro três pães, e o terceiro um odre de vinho, para a festa sacrifical. Fizeram a Saul a saudação usual, e também o presentearam com dois dos três pães. Em Gibeá, sua cidade, um grupo de profetas, voltando do “lugar alto”, cantavam o louvor de Deus, com música de flautas e harpas, saltérios e tambores. Aproximando-se Saul deles, sobreveio-lhe o Espírito do Senhor e ele também tomou parte em seu cântico de louvor, e com eles profetizou. Falou com tão grande influência e sabedoria, e com tanto fervor se uniu ao culto, que aqueles que o conheciam exclamaram com espanto: “Que é o que sucedeu ao filho de Quis? Está também Saul entre os profetas?” 1 Samuel 10:1-11. Tendo-se unido Saul com os profetas em seu culto, uma grande mudança operou-se nele pelo Espírito Santo. A luz da pureza e santidade divinas resplandeceu nas trevas do coração natural. Ele viu a si mesmo como estava diante de Deus. Viu a beleza da santidade. Foi agora chamado para começar a luta contra o pecado e Satanás, e fez-se-lhe compreender que neste conflito sua força deveria vir inteiramente de Deus. O plano da salvação que antes parecera obscuro e incerto, desvendou-se-lhe ao entendimento. O Senhor dotou-o de coragem e sabedoria para o seu elevado cargo. Revelou-lhe a fonte de força e graça, iluminando-lhe o entendimento quanto às exigências divinas e ao seu próprio dever. A unção de Saul como rei não fora levada ao conhecimento da nação. A escolha de Deus deveria ser publicamente manifesta por meio de sorte. Para tal fim Samuel convocou o povo de Mispa. Foi feita oração rogando-se guia divina; então seguiu-se a solene cerimônia de lançar a sorte. Em silêncio a multidão congregada aguardava o resultado. A tribo, a família e a casa foram sucessivamente designadas, e então Saul, o filho de Quis, foi indicado como o indivíduo escolhido. Mas Saul não estava na assembléia. Oprimido com uma intuição da grande responsabilidade prestes a cair sobre ele, retirara-se secretamente. Foi de novo trazido à congregação, que observou com orgulho e satisfação ter ele porte real e formas nobres, sendo “mais alto do que todo o povo desde o ombro para cima”. Mesmo Samuel, quando o apresentou à assembléia, exclamou: “Vedes já a quem o Senhor tem elegido? pois em todo o povo não há nenhum semelhante a ele.” E em resposta surgiu da vasta multidão uma demorada e ruidosa aclamação de alegria: “Viva o rei!” Samuel então expôs ao povo “o direito do reino” (1 Samuel 10:23-25), declarando os princípios sobre os quais o governo monárquico se baseava, e pelos quais cumpria ser dirigido. O rei não deveria agir de forma absoluta, mas conservar seu poder em sujeição à vontade do Altíssimo. Este discurso foi registrado em um livro, no qual se estabeleciam as prerrogativas do príncipe e os direitos e privilégios do povo. Embora a nação houvesse desprezado a advertência de Samuel, o fiel profeta — conquanto forçado a ceder aos seus desejos — ainda se esforçou tanto quanto possível para acautelar as suas liberdades. Ao mesmo tempo em que o povo em geral estava pronto para reconhecer a Saul como seu rei, havia um grande partido em oposição. Ser escolhido um rei de Benjamim, a menor das tribos de Israel, e isto em detrimento tanto de Judá como de Efraim, as maiores e mais poderosas — era uma indiferença que não podiam tolerar. Recusaram-se a declarar submissão a Saul, ou trazer-lhe os presentes costumeiros. Os que foram os mais insistentes em seu pedido para terem um rei, eram os mesmos que se recusavam aceitar com gratidão o homem indicado por Deus.
Este capítulo é baseado em 1 Samuel 8-12. O governo de Israel era administrado em nome e pela autoridade de Deus. O trabalho de Moisés, o dos setenta anciãos, dos príncipes e juízes, era simplesmente pôr em execução as leis que Deus dera; não tinham eles autoridade para legislar para a nação. Esta foi, e continuou a ser a condição da existência de Israel como nação. De tempos em tempos homens inspirados por Deus eram enviados para instruírem o povo, e guiá-lo na execução das leis. O Senhor previu que Israel desejaria um rei, mas não consentiu em uma mudança nos princípios sobre os quais foi fundado o Estado. O rei devia ser representante do Altíssimo. Deus devia ser reconhecido como o Líder da nação, e Sua lei executada como a lei suprema do país. Quando, inicialmente, os israelitas se estabeleceram em Canaã, reconheciam os princípios da teocracia, e a nação prosperou sob o governo de Josué. Mas o aumento da população e o intercâmbio com outras nações acarretaram uma mudança. O povo adotou muitos dos costumes dos seus vizinhos gentílicos, e assim sacrificou, em grande proporção, seu próprio caráter peculiar e santo. Gradualmente perderam sua reverência para com Deus, e deixaram de apreciar a honra de ser Seu povo escolhido. Atraídos pela pompa e ostentação dos reis gentílicos, cansaram-se de sua própria simplicidade. Rivalidades e inveja surgiram entre as tribos. Dissensões internas debilitaram-nas; estavam continuamente expostas à invasão de seus adversários gentios, e o povo começava a crer que, a fim de manter sua posição entre as nações, deveriam as tribos unir-se sob um forte governo central. Afastando-se da obediência à lei de Deus, desejaram libertar-se do governo de seu divino Soberano; e assim o pedido para terem um rei generalizou-se por todo o Israel. Desde os dias de Josué o governo nunca fora dirigido com tão grande sabedoria e êxito como sob a administração de Samuel. Investido divinamente com a tríplice função de juiz, profeta e sacerdote, trabalhara ele com incansável e desinteressado zelo pelo bem-estar de seu povo, e a nação prosperara sob sua sábia administração. A ordem havia sido restabelecida, promovida a piedade, e o espírito de descontentamento impedido durante aquele tempo. Mas, com o avançar dos anos, o profeta foi obrigado a repartir com outros os cuidados do governo, e ele designou seus dois filhos para agirem como seus auxiliares. Enquanto Samuel continuava com os deveres de seu ofício em Ramá, os moços se localizaram em Berseba para administrarem a justiça entre o povo, próximo da fronteira sul do país. Foi com inteiro apoio da nação que Samuel designara seus filhos para o ofício; mas eles não se mostraram dignos da escolha de seu pai. Havia o Senhor, por meio de Moisés, dado instruções especiais a Seu povo, a fim de que os príncipes de Israel julgassem retamente, tratassem com justiça da viúva e do órfão, e não recebessem suborno. Mas os filhos de Samuel “se inclinaram à avareza, e tomaram presentes, e perverteram o juízo”. Os filhos do profeta não atenderam aos preceitos que ele procurara gravar em suas mentes. Não imitaram a vida pura e abnegada de seu pai. A advertência feita a Eli não exercera sobre a mente de Samuel a influência que deveria ter exercido. Ele fora até certo ponto demasiado condescendente com seus filhos, e o resultado foi visível no caráter e na vida deles. A injustiça desses juízes causava muito descontentamento, e forneceu-se assim um pretexto para se insistir na mudança que havia muito era secretamente desejada. “Todos os anciãos de Israel se congregaram, e vieram a Samuel, a Ramá, e disseram-lhe: Eis que já estás velho, e teus filhos não andam pelos teus caminhos. Constitui-nos, pois, agora um rei sobre nós, para que ele nos julgue, como o têm todas as nações”. 1 Samuel 8:3-5. Os casos de abusos praticados entre o povo não foram referidos a Samuel. Houvesse se tornado conhecida dele a má conduta de seus filhos, e ele os teria retirado sem demora; mas isto não era o que os suplicantes desejavam. Samuel viu que o seu objetivo real era o descontentamento e o orgulho, e que seu pedido era o resultado de um propósito deliberado e decidido. Nenhuma queixa fora feita contra Samuel. Todos reconheciam a integridade e sabedoria de sua administração; mas o idoso profeta considerou o pedido como uma censura a si, e um esforço direto para o pôr de parte. Não revelou, entretanto, os seus sentimentos; não proferiu qualquer exprobração, mas levou a questão ao Senhor em oração, e apenas dEle procurou conselho. E o Senhor disse a Samuel: “Ouve a voz do povo em tudo quanto te disserem, pois não te têm rejeitado a ti, antes a Mim Me têm rejeitado para Eu não reinar sobre eles. Conforme a todas as obras que fizeram desde o dia em que os tirei do Egito até ao dia de hoje, pois a Mim Me deixaram, e a outros deuses serviram, assim também te fizeram a ti”. 1 Samuel 8:7, 8. O profeta foi reprovado por ofender-se com a conduta do povo em relação a si, individualmente. Não haviam manifestado desrespeito para com ele, mas para com a autoridade de Deus, que havia designado os príncipes de Seu povo. Aqueles que desprezam e rejeitam o fiel servo de Deus, mostram desdém, não meramente ao homem, mas ao Senhor que o enviou. São as palavras de Deus, Suas reprovações e conselhos, o que é anulado; é Sua autoridade que é rejeitada. Os dias da máxima prosperidade de Israel foram aqueles em que reconheciam a Jeová como seu Rei — em que as leis e governo que tinham sido estabelecidos eram considerados como superiores aos de todas as outras nações. Moisés declarara a Israel com relação aos mandamentos de Deus: “Esta será a vossa sabedoria e o vosso entendimento perante os olhos dos povos, que ouvirão todos estes estatutos, e dirão: Este grande povo só é gente sábia e entendida”. Deuteronômio 4:6. Mas, afastando-se da lei de Deus, os hebreus deixaram de se tornar o povo que Deus desejava fazer deles, e então todos os males que foram o resultado de seu próprio pecado e desatino atribuíram ao governo de Deus. Tão completamente cegos se haviam tornado pelo pecado. Tinha o Senhor, mediante os Seus profetas, predito que Israel seria governado por um rei; mas não se segue que esta forma de governo fosse a melhor para eles, ou de acordo com Sua vontade. Ele permitiu que o povo seguisse sua própria escolha, porque se recusaram a ser guiados por Seu conselho. Oséias declara que Deus lhes deu um rei em Sua ira. Oséias 13:11. Quando os homens preferem seguir o seu próprio caminho, sem buscar conselho de Deus, ou em oposição à Sua vontade revelada, muitas vezes Ele satisfaz seus desejos, a fim de que, por meio da amarga experiência que se segue, possam ser levados a compenetrar-se de sua loucura e a arrepender-se de seu pecado. O orgulho e a sabedoria humana demonstrar-se-ão um guia perigoso. Aquilo que o coração deseja contrário à vontade de Deus, verificar-se-á, no fim, que é uma maldição em vez de bênção. Deus desejava que Seu povo apenas olhasse para Ele como seu legislador e fonte de força. Sentindo sua dependência de Deus, seriam constantemente atraídos para mais perto dEle. Tornar-se-iam elevados e enobrecidos, adaptados ao alto destino a que Ele os chamara como Seu povo escolhido. Mas, quando fosse posto sobre o trono um homem, isto tenderia a desviar de Deus a mente do povo. Eles confiariam mais na força humana, e menos no poder divino, e os erros de seu rei levá-los-iam ao pecado, e separariam a nação de Deus. Samuel foi instruído a satisfazer o pedido do povo, mas adverti-los da desaprovação do Senhor, e também dar a conhecer qual seria o resultado de sua conduta. “E falou Samuel todas as palavras do Senhor ao povo, que lhe pedia um rei.” Expôs-lhes fielmente os encargos que seriam postos sobre eles, e mostrou o contraste entre tal estado de opressão e sua condição presente, relativamente livre e próspera. Seu rei imitaria de outros a pompa e o luxo, para sustentar os quais seriam necessários pesados impostos sobre suas pessoas e propriedades. O que melhor havia de entre seus moços ele exigiria para o seu serviço. Tornar-se-iam cocheiros, cavaleiros e batedores diante dele. Deveriam preencher as fileiras de seu exército, e exigir-se-lhes-ia cultivar seus campos, ceifar suas plantações, e fabricar implementos de guerra para o seu serviço. As filhas de Israel seriam tomadas como confeiteiras e padeiras para a casa real. Para manter sua condição régia, apoderar-se-ia do melhor de suas terras, concedidas ao povo pelo próprio Jeová. Os mais valiosos de seus servos, igualmente, e de seu gado, ele tomaria e os empregaria “no seu trabalho”. Além de tudo isto o rei exigiria um dízimo de toda a sua receita, dos lucros de seu trabalho, ou dos produtos do solo. “Vós lhe servireis de criados”, concluiu o profeta. “Então naquele dia clamareis por causa de vosso rei, que vós houverdes escolhido; mas o Senhor não vos ouvirá naquele dia”. 1 Samuel 8:10-18. Por mais pesadas que se achassem suas exigências, uma vez estabelecida a monarquia, não a poderiam eles depor à vontade. Mas o povo deu a resposta: “Não, mas haverá sobre nós um rei. E nós também seremos como todas as outras nações; e o nosso rei nos julgará, e sairá adiante de nós, e fará as nossas guerras.” “Como todas as outras nações”. 1 Samuel 8:19, 20. Os israelitas não compreendiam que serem neste sentido diferentes de outras nações era um privilégio e bênção especiais. Deus havia separado os israelitas de todos os outros povos, para deles fazer Seu tesouro peculiar. Eles, porém, não tomando em consideração esta alta honra, desejaram avidamente imitar o exemplo dos gentios! E ainda o anelo de conformar-se às práticas e costumes mundanos existe entre o povo professo de Deus. Afastando-se eles do Senhor, tornam-se ambiciosos dos proveitos e honras do mundo. Cristãos acham-se constantemente procurando imitar as práticas dos que adoram o deus deste mundo. Muitos insistem em que, unindo-se aos mundanos e conformando-se aos seus costumes, poderiam exercer uma influência mais forte sobre os ímpios. Mas todos os que adotam tal método de proceder, separam-se desta maneira da Fonte de sua força. Tornando-se amigos do mundo, são inimigos de Deus. Por amor à distinção terrestre, sacrificam a indizível honra a que Deus os chamou, honra esta de mostrarem os louvores dAquele que nos chamou das trevas para a Sua maravilhosa luz. 1 Pedro 2:9. Com profunda tristeza Samuel escutou as palavras do povo; mas o Senhor lhe disse: “Dá ouvidos à sua voz, e constitui-lhes rei”. 1 Samuel 8:22. O profeta cumprira o seu dever. Apresentara fielmente o aviso, e este fora rejeitado. Com pesaroso coração despediu o povo, e retirou-se a fim de preparar a grande mudança no governo. A vida de pureza e devoção abnegada de Samuel era uma repreensão perpétua tanto para os sacerdotes e anciãos que só cuidavam de si, como para a congregação de Israel, orgulhosa e sensual. Embora não exibisse pompa nem fizesse ostentação, seus labores traziam o cunho do Céu. Ele foi honrado pelo Redentor do mundo, sob cuja guia governou a nação hebréia. Mas o povo se cansara de sua piedade e devoção; desprezaram sua humilde autoridade, e o rejeitaram preferindo um homem que os governasse como rei. No caráter de Samuel vemos refletida a semelhança de Cristo. Foi a pureza da vida do Salvador que provocou a ira de Satanás. Aquela vida era a luz do mundo, e revelava a depravação oculta no coração dos homens. Foi a santidade de Cristo que suscitou contra Ele as mais cruéis paixões dos que com um coração falso professavam a piedade. Cristo não veio com a opulência e honras da Terra; contudo as obras que realizava mostravam possuir Ele poder maior do que de qualquer príncipe humano. Os judeus esperavam que o Messias viesse a quebrar o jugo do opressor; todavia, acariciavam os pecados que lhes haviam ligado esse jugo ao pescoço. Houvesse Cristo encoberto os pecados deles e aplaudido a sua piedade, e O teriam aceito como seu rei; mas não quiseram suportar Sua destemida repreensão aos seus vícios. A beleza de um caráter em que a benevolência, a pureza e a santidade reinavam supremas, que não alimentava ódio a não ser ao pecado, eles a desprezaram. Assim tem sido em todas as épocas do mundo. A luz do Céu traz condenação sobre todos os que se recusam a andar nela. Quando repreendidos pelo exemplo daqueles que odeiam ao pecado, tornam-se os hipócritas, agentes de Satanás para afligir e perseguir os fiéis. “Todos os que piamente querem viver em Cristo Jesus padecerão perseguições”. 2 Timóteo 3:12. Se bem que tivesse sido predita na profecia a forma de governo monárquica para Israel, Deus Se reservara o direito de lhes escolher o rei. Os hebreus respeitaram a autoridade de Deus até ao ponto de deixarem a seleção inteiramente com Ele. A escolha recaiu sobre Saul, filho de Quis, da tribo de Benjamim. As qualidades pessoais do futuro líder eram de maneira que satisfaziam aquele orgulho íntimo que inspira o desejo de terem um rei. “Entre os filhos de Israel não havia outro homem mais belo do que ele”. 1 Samuel 9:2. De porte nobre e digno, na flor da idade, garboso e alto, tinha ele a aparência de alguém que nascera para governar. No entanto, com tais atrações externas, Saul era desprovido daquelas qualidades mais elevadas que constituem a verdadeira sabedoria. Não tinha aprendido em sua mocidade a dominar suas paixões temerárias e impetuosas; nunca sentira o poder renovador da graça divina. Saul era filho de um poderoso e rico chefe; todavia em conformidade com a simplicidade daqueles tempos, estava empenhado com seu pai nos humildes deveres de lavrador. Tendo-se alguns dos animais de seu pai extraviado nas montanhas, Saul foi com um servo à busca deles. Durante três dias fizeram infrutíferas buscas, quando, não estando eles longe de Ramá, a residência de Samuel, o servo propôs que indagassem do profeta a respeito dos animais que faltavam. “Ainda se acha na minha mão um quarto dum siclo de prata”, disse ele, “o qual darei ao homem de Deus, para que nos mostre o caminho”. 1 Samuel 9:8. Isso estava de acordo com o costume daqueles tempos. Uma pessoa que se aproximasse de um superior em posição social ou função, dava-lhe um pequeno presente, em sinal de respeito. Aproximando-se eles da cidade, encontraram-se com algumas moças que tinham vindo tirar água, e indagaram delas acerca do vidente. Em resposta souberam que uma cerimônia religiosa estava para ocorrer, que o profeta já havia chegado, que deveria haver uma oferta no “lugar alto”, e depois daquilo um sacrifício. Uma grande mudança se havia realizado durante a administração de Samuel. Quando o chamado de Deus veio a princípio a ele, os serviços do santuário eram tidos em desdém. “Os homens desprezavam a oferta do Senhor”. 1 Samuel 2:17. Agora, porém, o culto de Deus era mantido por todo o país, e o povo manifestava interesse nos serviços religiosos. Não havendo trabalhos ministeriais no tabernáculo, os sacrifícios eram naquele tempo oferecidos em outra parte; e as cidades dos sacerdotes e levitas, aonde o povo acorria a receber instrução, foram escolhidas para este fim. Os pontos mais altos nessas cidades eram usualmente escolhidos como o lugar do sacrifício, e daí o serem chamados lugares altos. À porta da cidade, Saul foi defrontado pelo próprio profeta. Deus tinha revelado a Samuel que naquela ocasião o escolhido rei de Israel se apresentaria diante dele. Estando em face um do outro, disse o Senhor a Samuel: “Eis aqui o homem de quem já te tenho dito. Este dominará sobre o Meu povo.” Ao pedido de Saul — “Mostra-me, peço-te, onde está aqui a casa do vidente”, Samuel replicou: “Eu sou o vidente.” Assegurando-lhe também que os animais perdidos tinham sido encontrados, insistiu com ele para que ficasse e assistisse à festa, dando ao mesmo tempo alguma indicação do grande destino que o esperava: “Para quem é todo o desejo de Israel? porventura não é para ti, e para toda a casa de teu pai?” O coração daquele que ouvia fremiu com as palavras do profeta. Não podia perceber senão algo da significação das mesmas; pois o pedido de um rei se tornara o assunto de absorvente interesse à nação inteira. Todavia, depreciando-se modestamente, Saul replicou: “Porventura não sou eu filho de Benjamim, da mais pequena das tribos de Israel? E a minha família a mais pequena de todas as famílias da tribo de Benjamim? Por que, pois, me falas com semelhantes palavras?” 1 Samuel 9:18-21. Samuel conduziu o estranho ao local da assembléia, onde estavam reunidos os homens principais da cidade. Entre eles, por determinação do profeta, o lugar de honra foi dado a Saul, e no festim o quinhão mais escolhido foi posto diante dele. Terminadas as cerimônias, Samuel levou o hóspede à sua casa, e ali, no eirado, conversou com ele, apresentando os grandes princípios sobre os quais o governo de Israel fora estabelecido, e procurando assim prepará-lo até certo ponto para o seu elevado cargo. Quando Saul partiu, cedo na manhã seguinte, o profeta saiu com ele. Tendo atravessado a cidade, mandou que o servo passasse adiante. Então ordenou a Saul que parasse a fim de receber uma mensagem a ele enviada por Deus. “Então tomou Samuel um vaso de azeite, e lho derramou sobre a cabeça, e o beijou, e disse: Porventura te não tem ungido o Senhor por capitão sobre a Sua herdade?” Como prova de que isto era feito por autorização divina, predisse os incidentes que ocorreriam em sua viagem para casa, e afirmou a Saul que ele seria habilitado pelo Espírito de Deus para o cargo que o esperava. “O Espírito do Senhor se apoderará de ti”, disse o profeta, “e te mudarás em outro homem. E há de ser que, quando estes sinais te vierem, faze o que achar a tua mão, porque Deus é contigo.” Tendo seguido Saul o seu caminho, tudo aconteceu conforme dissera o profeta. Perto dos termos de Benjamim foi informado de que os animais perdidos tinham sido achados. Na planície de Tabor encontrou três homens que iam adorar a Deus em Betel. Um deles levava três cabritos para o sacrifício, outro três pães, e o terceiro um odre de vinho, para a festa sacrifical. Fizeram a Saul a saudação usual, e também o presentearam com dois dos três pães. Em Gibeá, sua cidade, um grupo de profetas, voltando do “lugar alto”, cantavam o louvor de Deus, com música de flautas e harpas, saltérios e tambores. Aproximando-se Saul deles, sobreveio-lhe o Espírito do Senhor e ele também tomou parte em seu cântico de louvor, e com eles profetizou. Falou com tão grande influência e sabedoria, e com tanto fervor se uniu ao culto, que aqueles que o conheciam exclamaram com espanto: “Que é o que sucedeu ao filho de Quis? Está também Saul entre os profetas?” 1 Samuel 10:1-11. Tendo-se unido Saul com os profetas em seu culto, uma grande mudança operou-se nele pelo Espírito Santo. A luz da pureza e santidade divinas resplandeceu nas trevas do coração natural. Ele viu a si mesmo como estava diante de Deus. Viu a beleza da santidade. Foi agora chamado para começar a luta contra o pecado e Satanás, e fez-se-lhe compreender que neste conflito sua força deveria vir inteiramente de Deus. O plano da salvação que antes parecera obscuro e incerto, desvendou-se-lhe ao entendimento. O Senhor dotou-o de coragem e sabedoria para o seu elevado cargo. Revelou-lhe a fonte de força e graça, iluminando-lhe o entendimento quanto às exigências divinas e ao seu próprio dever. A unção de Saul como rei não fora levada ao conhecimento da nação. A escolha de Deus deveria ser publicamente manifesta por meio de sorte. Para tal fim Samuel convocou o povo de Mispa. Foi feita oração rogando-se guia divina; então seguiu-se a solene cerimônia de lançar a sorte. Em silêncio a multidão congregada aguardava o resultado. A tribo, a família e a casa foram sucessivamente designadas, e então Saul, o filho de Quis, foi indicado como o indivíduo escolhido. Mas Saul não estava na assembléia. Oprimido com uma intuição da grande responsabilidade prestes a cair sobre ele, retirara-se secretamente. Foi de novo trazido à congregação, que observou com orgulho e satisfação ter ele porte real e formas nobres, sendo “mais alto do que todo o povo desde o ombro para cima”. Mesmo Samuel, quando o apresentou à assembléia, exclamou: “Vedes já a quem o Senhor tem elegido? pois em todo o povo não há nenhum semelhante a ele.” E em resposta surgiu da vasta multidão uma demorada e ruidosa aclamação de alegria: “Viva o rei!” Samuel então expôs ao povo “o direito do reino” (1 Samuel 10:23-25), declarando os princípios sobre os quais o governo monárquico se baseava, e pelos quais cumpria ser dirigido. O rei não deveria agir de forma absoluta, mas conservar seu poder em sujeição à vontade do Altíssimo. Este discurso foi registrado em um livro, no qual se estabeleciam as prerrogativas do príncipe e os direitos e privilégios do povo. Embora a nação houvesse desprezado a advertência de Samuel, o fiel profeta — conquanto forçado a ceder aos seus desejos — ainda se esforçou tanto quanto possível para acautelar as suas liberdades. Ao mesmo tempo em que o povo em geral estava pronto para reconhecer a Saul como seu rei, havia um grande partido em oposição. Ser escolhido um rei de Benjamim, a menor das tribos de Israel, e isto em detrimento tanto de Judá como de Efraim, as maiores e mais poderosas — era uma indiferença que não podiam tolerar. Recusaram-se a declarar submissão a Saul, ou trazer-lhe os presentes costumeiros. Os que foram os mais insistentes em seu pedido para terem um rei, eram os mesmos que se recusavam aceitar com gratidão o homem indicado por Deus.
Os membros de cada facção tinham seu favorito, que desejavam ver colocado sobre o trono; e vários dentre os chefes haviam desejado a honra para si. A inveja e a desconfiança ardiam no coração de muitos. Os esforços do orgulho e da ambição haviam resultado na decepção e no desencanto.
Nesse estado de coisas, Saul não achou conveniente assumir a dignidade real. Deixando que Samuel administrasse o governo, como anteriormente, voltou a Gibeá. Foi honrosamente escoltado para ali por uma multidão, que, vendo a escolha divina em sua seleção, estava decidida a apoiá-lo. Mas ele não fez tentativas para manter pela força seu direito ao trono.
Em seu lar, entre as terras altas de Benjamim, pacificamente ocupou-se com os deveres de lavrador, deixando inteiramente a Deus o estabelecimento de sua autoridade.
Logo depois da designação de Saul, os amonitas sob a administração de seu rei, Naás, invadiram o território das tribos ao oriente do Jordão, e ameaçaram a cidade de Jabes-Gileade.
Os habitantes procuraram negociar a paz, oferecendo-se para se fazerem tributários dos amonitas. Com isto o cruel rei não quis consentir a não ser sob condição de poder arrancar o olho direito de cada um deles, tornando-os assim testemunhas duradouras de seu poder.
O povo da cidade sitiada pediu um prazo de sete dias. Com isto consentiram os amonitas, julgando assim aumentar a honra de seu esperado triunfo. Imediatamente foram expedidos de Jabes mensageiros, em busca de auxílio das tribos ao oeste do Jordão. Levaram a notícia a Gibeá, suscitando terror em vasta região. Saul, voltando à noite de acompanhar os bois no campo, ouviu o alto pranto que falava de alguma grande calamidade.
Perguntou: “Que tem o povo, que chora?” Quando lhe foi repetida a vergonhosa história, despertaram-se todas as suas forças dormentes. “O Espírito de Deus Se apoderou de Saul. [...] E tomou um par de bois, e cortou-os em pedaços, e os enviou a todos os termos de Israel pelas mãos dos mensageiros, dizendo: Qualquer que não sair atrás de Saul e atrás de Samuel, assim se fará aos seus bois”. 1 Samuel 11:5-7.
Trezentos e trinta mil homens se reuniram na planície de Bezeque, sob o comando de Saul. Imediatamente foram enviados mensageiros à cidade sitiada, com a afirmação de que poderiam esperar auxílio no dia seguinte, que era o próprio dia em que deveriam submeter-se aos amonitas. Por meio de uma rápida marcha noturna, Saul e seu exército atravessaram o Jordão, e chegaram diante de Jabes “pela vigília da manhã”.
Como Gideão, dividindo sua força em três companhias, caiu sobre o arraial dos amonitas naquela hora matutina, quando, não suspeitando perigo, estavam menos prevenidos. No pânico que se seguiu foram derrotados, com grande mortandade. E “os restantes se espalharam, que não ficaram dois deles juntos”. 1 Samuel 11:11.
A prontidão e bravura de Saul, bem como suas aptidões de general ostentadas ao conduzir com êxito uma força tão grande, eram qualidades que o povo de Israel desejara em um rei, a fim de que pudessem competir com outras nações. Saudaram-no agora como seu rei atribuindo a honra da vitória a forças humanas, e esquecendo-se de que, sem a bênção especial de Deus, todos os seus esforços teriam sido nulos. Em seu entusiasmo propuseram alguns matar os que se tinham a princípio recusado a reconhecer a autoridade de Saul.
Mas o rei interveio, dizendo: “Hoje não morrerá nenhum, pois hoje tem obrado o Senhor um livramento em Israel.” Aqui deu Saul prova da mudança que se tinha operado em seu caráter. Em vez de tomar para si a honra, deu glória a Deus. Em vez de mostrar desejo de vingança, manifestou um espírito de compaixão e perdão.
Isto é prova inequívoca de que a graça de Deus habita no coração.
Samuel propôs então que uma assembléia nacional fosse convocada em Gilgal, a fim de que o reino pudesse ali ser publicamente confirmado a Saul. Isto foi feito; “e ofereceram ali ofertas pacíficas perante o Senhor; e Saul se alegrou muito ali com todos os homens de Israel”. 1 Samuel 11:13, 15.
Gilgal tinha sido o local do primeiro acampamento de Israel na Terra Prometida. Foi ali que Josué, por determinação divina, construiu uma coluna de doze pedras para comemorar a miraculosa passagem do Jordão. Ali fora renovada a circuncisão. Ali celebraram a primeira Páscoa, depois do pecado de Cades, e da peregrinação no deserto.
Ali cessou o maná. Ali o Capitão do exército do Senhor Se revelou como comandante-em-chefe das tropas de Israel. Daquele ponto marcharam para a subversão de Jericó e conquista de Ai. Ali Acã recebeu a pena de seu pecado, e ali foi feito com os gibeonitas aquele tratado que puniu a negligência de Israel de aconselhar-se com Deus.
Nessa planície, ligada com tantas lembranças comoventes, estavam em pé Samuel e Saul; e, quando cessaram as aclamações de boas-vindas ao rei, o idoso profeta proferiu suas palavras de despedida como governador da nação.
“Eis que ouvi a vossa voz”, disse ele, “em tudo quanto me dissestes, e pus sobre vós um rei. Agora, pois, eis que o rei vai diante de vós, e já envelheci e encaneci, [...] e eu tenho andado diante de vós desde a minha mocidade até ao dia de hoje. Eis-me aqui, testificai contra mim, perante o Senhor, e perante o Seu ungido, a quem tomei o boi, a quem tomei o jumento, e a quem defraudei, a quem tenho oprimido, e de cuja mão tenho tomado presente e com ele encobri os meus olhos, e vo-lo restituirei.” A uma voz o povo respondeu: “Em nada nos defraudaste, nem nos oprimiste, nem tomaste coisa alguma da mão de ninguém”. 1 Samuel 12:1-4.
Samuel não estava procurando meramente justificar sua conduta.
Tinha previamente apresentado os princípios que deveriam governar tanto o rei como o povo, e desejava acrescentar às suas palavras o peso de seu exemplo. Desde a meninice havia estado ligado com a obra de Deus, e durante sua longa vida tivera sempre um único objetivo diante de si — a glória de Deus e o máximo bem de Israel.
Antes que pudesse haver qualquer esperança de prosperidade para Israel, deveriam eles ser levados ao arrependimento diante de Deus. Em conseqüência do pecado, tinham perdido a fé em Deus e o discernimento acerca de Seu poder e sabedoria para governar a nação perderam a confiança em Sua habilidade para reivindicar Sua causa.
Antes de poderem encontrar a verdadeira paz, deveriam ser levados a ver e confessar o próprio pecado de que haviam sido culpados. Tinham declarado ser este o objetivo no pedido de um rei: “O nosso rei nos julgará, e sairá diante de nós, e fará as nossas guerras”. 1 Samuel 8:20. Samuel contou novamente a história de Israel, desde o dia em que Deus os tirou do Egito. Jeová, o Rei dos reis, tinha ido diante deles, e pelejara suas guerras. Muitas vezes seus pecados os haviam entregue em poder de seus inimigos, mas apenas se desviavam de seus maus caminhos e a misericórdia de Deus suscitava um libertador.
O Senhor enviou Gideão e Baraque, “e a Jefté, e a Samuel; e livrou-vos da mão de vossos inimigos, em redor, e habitastes seguros”. Contudo, quando ameaçados de perigo, declararam: “Reinará sobre nós um rei”, sendo, disse o profeta, “o Senhor vosso Deus o vosso Rei”.
“Agora, pois”, continuou Samuel, “ponde-vos também agora aqui, vede esta grande coisa que o Senhor vai fazer diante dos vossos olhos.
Não é hoje a sega dos trigos? clamarei, pois, ao Senhor, e dará trovões e chuva; e sabereis e vereis que é grande a vossa maldade que tendes feito perante o Senhor, pedindo para vós um rei. Então invocou Samuel ao Senhor, e o Senhor deu trovões e chuva naquele dia.” No tempo da colheita do trigo, em Maio e Junho, não caía chuva no Oriente.
O céu estava sem nuvens, e o ar sereno e agradável. Uma tempestade tão violenta naquela ocasião encheu de temor todos os corações. Com humilhação o povo confessou agora o seu pecado, o próprio pecado de que haviam sido culpados: “Roga pelos teus servos ao Senhor teu Deus, para que não venhamos a morrer; porque a todos os nossos pecados temos acrescentado este mal, de pedirmos para nós um rei”. 1 Samuel 12:11-19.
Samuel não deixou o povo em estado de desânimo, pois isto teria impedido todo o esforço para uma vida melhor.
Satanás levá-los-ia a considerar Deus como severo e implacável, e assim estariam expostos a muitas tentações. Deus é misericordioso e perdoador, desejando sempre mostrar favor para com Seu povo, quando este obedece à Sua voz. “Não temais”, foi a mensagem de Deus pelo Seu servo; “vós tendes cometido todo este mal; porém não vos desvieis de seguir ao Senhor, mas servi ao Senhor com todo o vosso coração. E não vos desvieis; pois seguiríeis as vaidades, que nada aproveitam, e tampouco vos livrarão, porque vaidades são.
Pois o Senhor não desamparará o Seu povo.”
Samuel nada disse quanto à indiferença que havia sido mostrada para com ele; não proferiu exprobração pela ingratidão com que Israel havia pago sua longa vida de dedicação; antes, assegurou-lhes seu incessante interesse por eles: “Longe de mim que eu peque contra o Senhor, deixando de orar por vós; antes vos ensinarei o caminho bom e direito.
Tão-somente temei ao Senhor, e servi-O fielmente com todo o vosso coração; porque vede quão grandiosas coisas vos fez. Porém, se perseverardes em fazer mal, perecereis, assim vós como o vosso rei”. 1 Samuel 12:20-25.