COMO COMPREENDER A TEOLOGIA DE KARL RAHNER
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Valdeci Fidelis D.Th |
A primeira questão que se põe é
quanto ao conteúdo da tradição, porque a fé cristã deve ser capaz de expressar
o evento histórico (e salvífico) Jesus Cristo de modo tal que se torne
acessível a todos os homens em todos os tempos de maneira inteligível. Foi esta
questão que, no primeiro século, levou a Igreja primitiva em sua pregação
apostólica a escrever os Evangelhos, o Novo Testamento. Aquele contexto
diferencia o magistério hodierno da Igreja de sua função meramente ouvinte e
serva da tradição dessa Igreja primitiva que foi inspirada por Deus ao lhe
atribuir o dever das escrituras.
O espectro desse
trabalho não permite relatar o progresso e o crescimento da noção católica de
tradição, particularmente havidos entre os Concílios de Trento e o Vaticano II,
o que não impede que se reconheça que, a partir do movimento da Reforma, a
teologia católica tenha sido impelida a melhor justificar a sua Tradição.
Essa “justificação” passa pela
observação de que com o decorrer do tempo as palavras podem perder ou ganhar sentidos,
de acordo com a mudança do contexto. Bastaria esse dado para que a literal repetição de doutrinas pelo
magistério da Igreja não fosse suficiente para a explicitação de um fato
pretérito. Eis aí o exemplo da Reforma. O ponto chave deste desafio é que a
Igreja se ocupa com verdades de fé reveladas “por Deus para a nossa salvação” e a hierarquia da Igreja deve ter
presente “o dever que tem de aprender
a ouvir o Espírito de Deus e acatá-lo, reconhecendo o pluralismo legítimo na
Igreja Católica”. Eis aqui o preço da prudência humana na lentidão da contra-reforma.
2.2 – A tradição e a evolução do dogma
Passando do entendimento de
tradição ao de evolução, no que respeita os dogmas de nossa fé, Rahner toma o exemplo
paradigmático do dogma da Assunção de Maria aos céus. É na base do raciocínio
de uma doutrina que nem sempre esteve presente, ou seja, nem sempre nos foi
claramente explicitada, mas que se torna manifesta como obrigatória, que Rahner
entende o termo “evolução”. Trata-se de algo que de alguma forma “chegou a ser”
dentro da história do cristianismo, uma vez que, no começo da pregação do
Evangelho, não existia tal como hoje.
Rahner admite um processo
evolutivo espiritual, em que ele reconhece que há uma “unidade hierárquica”, na qual vigora a mesma lei de evolução que aplicamos aos demais seres
vivos e, assim, busca diante da história que nos é reveladora do real o que, “sob a ação poderosa do Espírito, introduz o
homem em toda verdade”, num processo que não é somente “único”, mas também constitui um “todo unitário”, que faz do cristianismo
uma religião de fundo escatológico, que tem as vistas voltadas para o futuro.
Ao mesmo tempo em que para o homem
moderno o futuro “já” começou, o
cristão assevera que tal futuro “ainda”
não chegou, “porque se a plenitude
terrena é uma plenitude finita, na verdade não pode ser uma plenitude absoluta”. Por isso a história em que se desvela a evolução do dogma é a
história da progressiva manifestação do mistério que chega ao conhecimento do
homem paulatinamente, independentemente de uma grande reflexão teológica, pelo
poder do Espírito Santo.
Há certas leis da
evolução do dogma que podem ser conhecidas a priori, considerando que essa evolução culmina como uma
apelação à Igreja, como a última instância de julgamento dessa lei
apriorística. Daí a permanente tensão gerada pelo perigo que se constitui em
espremer esse “conhecimento” a partir do homem, ao invés de confiá-lo à
“promessa do Espírito, e somente a Ele, que vela a fim de que esse perigo,
sempre possível, não termine se convertendo em realidade”.
Rahner diz que podemos seguir
princípios a serem respeitados num conhecimento dessa natureza. Um princípio é
que se trata de “coisa óbvia”,
posto que a verdade revelada é sempre a mesma. Expressa algo que a Igreja se
apossa como parte da revelação a ela confiada, como objeto de sua fé
incondicional, posse essa que se dá para sempre e em definitivo. Esse princípio
limita o conteúdo do dogma porque exclui reflexos de objetivações de
sentimentos, atitudes e mentalidades mutáveis e que se prendem a uma determinada
época histórica e não a outra. O risco que existe em o homem adotar essas
proposições que são frutos de uma época é o de incidir num erro que o desvie da
verdade. Rahner vai chamar esse risco de que se possa adotar proposições que
não sejam “adequadamente verdadeiras, de proposições “meio falsas” por não
expressarem a realidade em questão e por suprimirem a diferença absoluta
existente entre a “verdade e o erro”.
É difícil ao homem determinar o
limite entre a proposição inadequada e falsa. Contudo, devemos considerar o
fato de as nossas proposições sobre a realidade infinita de Deus serem sempre
limitadas. Nesse sentido, as fórmulas com que expressamos a fé podem ser
superadas, mantendo-se verdadeiras, ou seja, podemos substituí-las por outra
que diga o mesmo e acrescente mais alguma coisa, que ainda assim diga “o mesmo”, porém com um novo matiz,
desde que articulada ao novo conhecimento no sistema de coisas que já se sabe,
já se sente e já se faz na experiência histórica e total de nossa vida, o que é
o sentido que todo ser humano tem de tradição.
2.3 – A evolução do dogma e a realidade da
palavra
Até aqui tratamos de exprimir a
mesma realidade, de outra maneira, o que não implica no conceito que temos de
progresso, ou como o diz Rahner: no aumento simultâneo de um “plus” quantitativo de conhecimento.
É
a Igreja trazendo no tempo a mudança do que permanece o mesmo, não significando
que tal mudança seja abandono da perspectiva anterior, o que é típico das
coisas materiais, mas não das coisas espirituais.
Por isso, o mistério da Trindade
divina, nas expressões de fé dos Concílios de Nicéia e de Florença, não se pode
tomar como ensaios teológicos, porque tais expressões não admitem contradição
entre si. Para o homem em particular, há uma diferença entre uma proposição
anterior e outra posterior, o que de fato existe, no que chamamos de evolução
do dogma, como comprova o modo efetivo de agir da Igreja na pregação de sua
doutrina.
É
nesse sentido que revelação é fruto de um diálogo histórico entre Deus e o
homem. E a comunicação da Igreja refere-se a este acontecer, ao diálogo que se
encaminha a um ponto final, no qual o acontecer e, em conseqüência, a sua
comunicação, chega ao seu ponto máximo e, com ele, à sua conclusão.
Daí o núcleo central do
cristianismo que afirma a revelação como acontecimento salvífico, acontecimento
que implica uma comunicação de verdades que, na história da salvação, alcançou
em Cristo seu ponto máximo, incapaz de ser superado. Por isso o alerta de
Rahner de que o cristianismo não é uma fase da história universal substituível
por outro “éon” intramundano,
porque todos os tempos surgem e desaparecem, passam a uma distância infinita da
eternidade autêntica que permanece no mais além. Tudo o que nasce já traz a
morte em si: culturas, povos, reinos, sistemas culturais, políticos, econômicos.
Antes de Cristo, o mesmo agir no
mundo do Deus que se revelara, estava “aberto”. Este agir criava tempos, planos
sucessivos de salvação, todavia não se sabia como Deus responderia definitivamente
ao homem, se sua última palavra seria de ira ou de amor. Agora está dada a
realidade definitiva que não pode ser superada e nem substituída; o
inextinguível e irrevogável presente de Deus no mundo como salvação, como amor
e perdão, como comunicação ao mundo dá mais íntima realidade divina e de sua
vida trinitária: Jesus Cristo.
Com isso a revelação está “encerrada”
por estar “aberta” à plenitude de Deus, que se encontra “ocultamente presente em Cristo”. A
clausura da revelação, assim o diz Rahner, não é uma expressão negativa, mas
positiva, posto que é puro “sim”, é a conclusão que inclui tudo e nada exclui
da plenitude compreensiva.
Unida no “éon” de Jesus Cristo a palavra se une ao que já está presente na
mensagem e a Igreja crente possui o que crê: Cristo, seu Espírito, o penhor da
vida, o vigor da eternidade, realidade esta que não pode ser apreendida “extra
muros” da palavra.
Isso nos leva a unir de
modo indivisível a palavra e a realidade mesma: uma na outra, nenhuma sem a
outra. A luz do Espírito e da fé se faz valer no próprio resultado, que é a
nossa realidade.
De outro modo, é importante dizer
que a luz da fé e o impulso do Espírito não se deixam objetivar de per si num olhar separado do objeto
da fé, por que o objeto da fé não é mero objeto passivo, mas é o princípio
mediante o qual o mesmo Espírito é captado como objeto.
Daí ser possível
explicar a evolução do dogma realmente acontecida e legítima, afastando o
perigo de rebaixar ao nível de nossas pobres operações mentais, meramente
humanas, à realidade superior e mais ampla do conhecimento da fé na dependência
do inferior e secundário, na dependência da teologia científica, que também é um elemento interno do
conhecimento da fé, mas de maneira alguma sua essência adequada
Seguindo Rahner, existe uma
evolução do dogma, que tem que existir e acontecer num “contato vivo com a realidade revelada”. Entre uma expressão
desse conhecimento e outra expressão desse mesmo conhecimento que é dado da
realidade, há a possibilidade de uma elaboração lógica mais rigorosa, ou seja:
a realidade contida nesses conhecimentos (conhecimento fundante e o
conhecimento fundado) está relacionada entre eles, supondo-se que “o conhecimento que evoluiu” seja uma
autêntica verdade dogmática, sob a garantia do magistério de que a nova
proposição reproduz exatamente o sentido da antiga, ou seja, o mesmo que a
proposição original, que diz também o que Deus revelou.
Conclusão
Assim é que se crê devido ao
testemunho do próprio Espírito de Deus, com fé divina. Isto é dogma e não
apenas teologia. Com isso não se elimina uma evolução teológica, mas se afirma
que existe uma evolução dogmática própria que não é resultado de um
conhecimento novo, dedutivo, mas que parte de várias proposições de fé
presentes do conhecimento “revelado” por Deus do sentido rigoroso da “fé divina”.
Rahner recorda que quando um homem
fala, jamais alcança plenamente as conseqüências reais que se deduzem
necessariamente de suas palavras. “Nós falamos sempre “por cima de nossa
própria cabeça”. Tudo o que propriamente dizemos não é a expressão plena do que
realmente queremos dizer”. Mas, o grande alerta do autor é que quando Deus
fala, não sucede o mesmo. Por isso Deus mesmo diz o que só na história viva do
que foi dito se desvela como dito, ou seja, não é o que Deus pronunciou em seu
sentido proposicional imediato, mas o que “comunicou” e, por isso, pode ser
crido como saber Seu.
Nessa linha, pode-se afirmar que
somente é inspirado aquilo que o autor humano quis dizer, o que implica que
podem ter sido comunicadas mais coisas, mesmo tendo-se Deus como autor
literário da Escritura. Podemos estar diante de outros mensageiros, como os
profetas, como portadores originários e não literários da revelação – que
encontram nos apóstolos sua expressão inspirada na comunicação de uma mensagem
de que não são os autores. Transmitem, assim, os apóstolos, uma mensagem não
própria, mas simplesmente a mensagem de Deus. Por isso, sua comunicação pode
superar o que eles souberam explicitamente dizer a respeito da mesma mensagem.
Rahner imagina o saber consciente
pleno da fé dos apóstolos e da comunidade primitiva, sem cair num anacronismo
a-histórico. Diz que é pouco o que se poderia saber a respeito, o que na
ocasião não era entendido e nem o poderia ser, mas também diz que se sabia “tudo” porque se apreendera vitalmente
a realidade total da ação salvadora de Deus e nela se vivia espiritualmente. A
herança que os apóstolos transmitem não são proposições, mas seu espírito, o
Espírito Santo de Deus, a realidade verdadeira do que eles experimentaram em
Cristo e por isso chamamos de perfectiva, já que nos reorienta sempre no
caminho que volta ao Senhor.
Essa successio apostolica, no sentido pleno e total da
palavra transmite à Igreja pós-apostólica, precisamente no que se refere ao
conhecimento da fé, não só um conjunto de proposições, mas a experiência viva:
o Espírito Santo, o Senhor sempre presente na Igreja, com a vitalidade da
verdade sem duplicidade.
Portanto, para Rahner, podemos nos
dedicar à investigação e reflexão teológica, com relação à Assunção, sem que o
resultado redunde em mera teologia, porque o magistério da Igreja dispõe de um
critério superior ao do teólogo isolado. A Igreja possui o órgão para perceber
o que aparece como resultado do trabalho teológico, que é mais do que mero
resultado do trabalho mental humano, porque é a própria palavra de Deus,
envolta noutra forma, numa nova articulação e explicação. É o magistério,
assistido pelo Espírito, que tem dupla função: garantir como verdadeiro o
resultado do trabalho teológico, inclusive quando tal trabalho não seja
provável, podendo, ainda, garantir que o resultado não é somente verdadeiro,
mas também Palavra de Deus.
Nesse sentido ele acresce que os
“novos dogmas marianos hão de ser vistos no conjunto da compreensão cristã da
fé”. Isto vale dizer que apenas se tomarmos por substância do cristianismo o
que Rahner chama de encarnação do próprio Logos eterno em nossa carne que,
partindo desta fé e de acordo com o testemunho escriturístico, deve-se dizer
que
Maria não representa
apenas episódio individual em uma biografia de Jesus Cristo, episódio carente
de interesse teológico, mas que ela, nesta história da salvação, é realidade
histórico-salvífica explícita. Se lermos Mateus, Lucas e João e se rezamos o símbolo
apostólico, onde professamos a fé em Jesus, o Logos divino, que nasceu da
Virgem Maria, com isso estamos a dizer – ainda que em fórmula muito simples –
que Maria foi a mãe de Jesus não só em sentido biológico, mas como alguém que
assume função bem determinada, e até mesmo única, nessa história da salvação
oficial e pública. No símbolo apostólico, Maria ocupa lugar que nem sequer
Lutero lhe contestou, embora ele tenha acreditado encontrar no culto mariano
daquela época medieval tardia tendências que ameaçavam ou negavam o sola gratia.
Por
isso, Rahner resume a essência de seu pensamento asseverando que:
No dogma não se diz
mais nada do que isso: Maria é a redimida de maneira radical. Partindo-se daí,
torna-se, na verdade, coisa muito óbvia o conceito básico, segundo o qual Maria
– como quem em sua maternidade pessoal e não apenas biológica, acolheu na fé a
salvação do mundo – constitui também o caso mais alto e mais radical de
realização da salvação, de fruto da salvação, da concepção da salvação. Tanto
na cristandade oriental como na ocidental isso foi algo tido como sumamente
óbvio, ainda que nem sempre se tenha apresentado neste grau de reflexão
explícita. E, a partir daí, é relativamente fácil compreender o que queremos
dizer, quando falamos de “imaculada conceição” e “assunção aos céus”, sem que
se tornem dogmas que fossem de modo adventício acrescentados à substância real
última do cristianismo.
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