Nós seres humanos temos a tendência de pensar que o passado sempre é melhor do que o presente. Às vezes isso é fato, às vezes só uma ilusão.
No passado é incontestável o papel de Martinho Lutero na origem do protestantismo. Mas ele também foi um alguém falho, além de ser o responsável pela tradução da bíblia ao idioma alemão (de valor inestimável), foi autor do livro "Sobre os judeus e suas mentiras" (livro vergonhoso!). É triste constatar que esse livro serviu de inspiração para a tentativa de erradicação do povo judeu, levando grupos de protestantes a pensarem que os judeus eram um mal que deveria ser exterminado. Lutero incorporou o anti – semitismo, escreveu: "... suas sinagogas deveriam ser queimadas, suas casas destruídas e arrasadas, deveriam ser privados de seus livros de orações e do Talmud, seus rabinos deveriam ser proibidos de ensinar sob pena de serem mortos, se não obedecerem, deveríamos expulsar os preguiçosos velhacos para fora do nosso sistema, portanto, fora com eles... Para acrescentar, caros príncipes e nobres que têm judeus em seus domínios, se meu conselho não lhes serve, encontrem então um melhor, de maneira a que todos nós sejamos libertos desta insuportável carga diabólica - os judeus" (Fonte: The Holy Reich: Nazi Conceptions of Christianity de Richard Steigmann - 2006).
Bem, o que quero dizer com isso? Que nós devemos nos pautar sempre na observância da Palavra de Deus. Rótulos são rótulos apenas... Colocar o estigma de protestante, pentecostal ou neopentecostal ou tradicional pode ser um muro de divisão e não a ponte que Deus quer que os cristãos construam. Pode levar às obras da carne.
Eu sou falho, mas em meu esforço para raciocinar, tendo a Palavra de Deus como base, me leva a pensar que através do orgulho de ser pentecostal também corremos grandes riscos de pecar contra os neopentecostais e tradicionais. Sobre a primeira colocação, quero apenas lembrá-lo que, na abertura deste artigo, afirmo: “Claro que não devemos nos prender ao passado, mas entender as implicações desse acontecimento é salutar por, pelo menos, três razões”. E a terceira razão apresentada é: “Saber nossa história, como se deu a trajetória da Igreja até os nossos dias, auxilia-nos a evitar equívocos futuros”. Repito: “auxilia-nos a evitar equívocos”.
O erro de muitos que olham para a Reforma é o de querer ver apenas os acertos dos reformadores, esquecendo seus erros, e aí criam uma visão romântica da Reforma e não realista (quando a visão realista não diminui a importância da Reforma, muito pelo contrário – como mostrarei em postagem futura).
Olhar para o passado da Igreja é bom porque aprendemos grandes lições em dois sentidos: aprendemos com os acertos dos servos de Deus do passado e com os erros deles também.
Como você tocou no assunto das falhas dos reformadores Portanto, não quero me aprofundar muito agora no assunto, o conteúdo todo do artigo. A lógica: neste primeiro artigo, a proposta é apresentar o que é o protestantismo e, sabendo o que é, comparar se estamos hoje, 500 anos depois, seguindo ou não os princípios bíblicos da Reforma; o segundo artigo é sobre as grandes conquistas da Reforma que devem nos inspirar. Portanto, vamos por etapas! Porém, mesmo assim, como você levantou um tema polêmico sobre Lutero, não poderia esquivar-me de responder essa questão, antecipando, um pouco que seja, algo sobre as falhas dele.
Em primeiro lugar, lembremos que os reformadores não eram super-homens espirituais assim como Abraão, Isaque, Jacó, Elias, Davi, Salomão e outros servos de Deus no passado não eram. Todos estes que citei tiveram falhas, umas maiores, outras menores, mas todos tiveram. E sabe qual é uma das coisas mais lindas que acho na Bíblia? É que ela não esconde as falhas dos heróis da fé. Já imaginou se escondesse? Se ela o fizesse, ao lermos a história dos homens de Deus na Bíblia, diríamos: “Meu Deus, eles eram tão perfeitos! Não há como eu poder ser usado por Ti como eles foram, pois sou tão falho...”
Graças a Deus por não esconder as falhas dos heróis bíblicos, por mostrar como eles realmente são! (Diferentemente do que faziam os historiadores das nações da Antiguidade. Eles eram funcionários do reino e, por isso, tão tendenciosos que muitos deles escondiam todas as falhas dos reis, exaltavam só as virtudes e ainda escondiam relatos de derrotas em guerras contra outras nações. Relatavam só as vitórias. Para saber a verdade sobre esses povos, os historiadores tiveram, em muitos casos, de comparar o que historiadores de nações inimigas diziam sobre aqueles reis).
A Bíblia, porém, não mente, não camufla. Deus não dá “jeitinho” pra ninguém. A Bíblia mostra ao ser humano que ele, ser humano, é falho mesmo e extremamente necessitado e dependente da graça, da misericórdia e do perdão de Deus para ser restaurado, abençoado e se tornar uma bênção.
Enfim, o que vemos na Bíblia é que Deus não faz a obra simplesmente através de nós. Ele faz Sua obra através de nós e “apesar de nós”, ou seja, apesar de nossas falhas. Elias era homem sujeito às mesmas paixões que nós e pôde ser usado por Deus como foi (Tg 5.17). Davi foi tremendamente falho, mas se arrependeu e pôde ser usado por Deus como foi. Nós somos falhos, mas podemos ser usados por Deus apesar de nossas fraquezas.
Então, não precisamos olhar para a Reforma para aprender que homens de Deus podem falhar. Basta lermos a Bíblia. Quem lê a Bíblia não se impressiona com a fraqueza humana, mesmo nos filhos de Deus.
Agora, em segundo lugar, devemos aprender a fazer distinção entre os que erram por fraqueza e os que erram por falta de conversão mesmo, porque são ímpios. No primeiro caso, não devemos ignorar os erros, mas também não devemos comprometer toda a obra de uma vida dedicada ao Senhor por causa desses erros isolados. Lutero e Calvino foram grandes homens, apesar de suas terríveis falhas. Já no último caso, devemos rechaçar esses falsos irmãos, que dizem que estão no Evangelho, mas o Evangelho não está realmente neles. Estes podem não se envergonhar do Evangelho, mas ele se envergonha deles.
Bem, mas vamos a Lutero e os judeus.
Uma das fraquezas de Lutero era justamente seu temperamento instável. O mesmo Lutero que escreveu isso sobre os judeus escreveu antes coisas lindas sobre eles. E numa época em que falar bem dos judeus era extremamente impopular!
O que os críticos de Lutero esquecem, quando citam essa fraqueza dele em relação aos judeus, é que, hoje, soa claramente repugnante essas palavras de Lutero, já que estamos em uma época onde temos uma cultura geral muito mais acumulada do que na época dele, e por isso podemos ver facilmente, independente de sermos cristãos ou não, o quão terrível são essas palavras. Mas, na época em que Lutero disse isso, a maioria esmagadora do povo em geral (ou seja, de todas as classes sociais de sua época, religiosos ou não) aprovou o que ele disse! Por quê? Por que os judeus eram vistos em sua época erroneamente como uma praga para a sociedade devido a alguns costumes terríveis que eles tinham. A hostilidade aos judeus naquela época não era algo “sui generis”. Era, infelizmente, o senso comum. Não era só por causa daquela história de “caia o teu sangue sobre nós” (Mt 27.25), que fez com que a Igreja Católica, no passado, os visse como malditos. Isso ajudou e muito, mas não era tudo.
A comparação que farei a seguir nem de longe é perfeita, mas serve, porque estamos falando de rejeição e impopularidade a uma pessoa ou grupo em uma determinada época. Pois bem, vamos a ela. O que Lutero disse em sua época é como se alguém, nos dias de hoje, tivesse dito: “Destruam a casa de Trempes, tirem seus bens, queimem tudo, deixem ele na pobreza!” Com certeza, tal discurso arrancaria hoje o aplauso da maioria esmagadora da população mundial (ou mesmo a maioria da ocidental). Tal era a impopularidade dos judeus na época!
Mas, por que essa impopularidade?
Os judeus eram vistos como criminosos por causa de assassinatos e, principalmente, profanação de templos cristãos. Mas isso era por parte dos judeus pobres (e mesmo assim era um estereótipo, uma generalização, mas era assim que eram vistos; os crimes de muitos destes judeus pobres faziam todos os demais sofrerem com esse estereótipo). Os judeus ricos, por sua vez, tinham a fama de serem opressores e maus (mesquinhos e exploradores), enquanto os cristãos ricos eram vistos como caridosos e bons. Vide o clássico “O Mercador de Veneza”, de William Shakespeare, que se fosse feito nos dias de hoje, levaria o Bardo à cadeia como anti-semita, mas na época foi visto como natural. Era a visão da época sobre os judeus. Some-se a isso a rixa étnica e religiosa entre cristãos e judeus, e pronto: os judeus eram o maior mal da humanidade. Erro, mas era o senso comum.
Só para se ter uma idéia: na época de Lutero, era comum encontrar pinturas degradantes que associavam judeus a excrementos. Em uma delas, do século 15, poucas décadas antes de Lutero, os judeus eram representados se alimentando do esterco que caia do fundo de uma porca. Mais terrível impossível!
Pois bem, é nessa conjuntura que Lutero escreve algo que choca o povo de sua época: textos a favor dos judeus. Contra todo o legado antijudaico da Idade Média, ele escreve enfaticamente em seu livrete intitulado “Que Jesus Cristo nasceu como judeu”, de 1523, que Deus “honrou os judeus acima de todos os povos” e que, por isso, “os cristãos deveriam tratar os judeus de modo fraterno”. Isso foi um escândalo para a época! Lutero só conseguiu transcender a forte cultura daquela época afirmando tal coisa porque os reformadores tentavam se ater à Palavra de Deus, e não aos aspectos culturais de sua época.
Mas se isso já era um escândalo, o que dizer do que se segue? Escrevendo em contraposição à proibição canônica medieval do casamento entre cristãos e judeus (sem estes terem se convertido), Lutero chegou a propor algo que é até liberal demais em relação às Escrituras: ele chegou a considerar normal um cristão protestante casar com um judeu não-convertido ao protestantismo (E a questão do jugo desigual, Lutero?). Leia o que ele diz, registrado em obras como “As Reformas na Europa”, de Carter Lindberg (Sinodal, 2001, págs. 435 e 436): “Assim como posso comer, beber, dormir, passear, cavalgar, negociar, conversar e trabalhar com um gentio, judeu, turco ou herege, também posso casar com ele e continuar casado, e não te importes com as leis loucas que to querem proibir. Pois é fácil encontrar cristãos que por dentro são descrentes piores – e esses são maioria – do que qualquer judeu, gentio, turco ou herege. Um gentio é homem ou mulher criado por Deus tão bem como São Pedro, São Paulo, um cristão imprestável e hipócrita”.
Na época que Lutero disse isso, casar com judeu, turco, herege ou gentio (pagão) era, aos olhos de muitas pessoas daquele período, como é para nós hoje um cristão casar com um espírita (aliás, nada diferente daquela época, pois trata-se de jugo desigual à luz da Bíblia), ou como, em uma região de xenofobia e preconceito racial, pessoas de etnias diferentes e adversárias casarem entre si - o que já é puro preconceito e pecado. (Mas, calma, esse era só mais um rompante de Lutero, que no final não apoiou o casamento de protestantes com pessoas de outra fé - só se já eram casados antes de se tornarem protestantes).
Então, o que fez Lutero mudar tão radicalmente de opinião, indo de um extremo ao outro?
Dizem os historiadores que essas suas terríveis palavras foram escritas porque, mesmo Lutero apoiando os judeus, estes desprezavam tanto a ele como aos protestantes. Então, o reformador, ressentido, no final da vida, escreveu aquela tolice, que foi algo momentâneo, já que seu temperamento era instável. Prova de que foi momentâneo é que seus seguidores e amigos da Reforma luterana defenderam os judeus. Urbano Rhegius, que era um deles, defendeu, com argumentos esclarecedores, a tolerância em relação aos judeus como concidadãos que deveriam ter direitos iguais e serem respeitados por todos. Quando ele escreveu isso, depois de Lutero dizer aquelas tolices, o reformador não rebateu nada, e olha que ele era do tipo que, se alguém de dentro ou de fora dissesse algo que contestasse algo que defendera, com certeza prepararia uma tréplica. Mas, nesse caso, ocorreu uma excepcional exceção, o que demonstra que Lutero escrevera aquelas tolices em um rompante tresloucado.
Agora, sobre o fato de os nazistas terem se aproveitado desses textos precipitados de Lutero, nada mais lógico. Os nazistas usaram de tudo à sua mão, até as palavras tolas de Lutero, e o fizeram totalmente fora de contexto. Sobre o uso posterior que os nazistas fizeram desses escritos do pai da Reforma, Lindberg afirma que é importante enfatizar que “Lutero, bem como outros autores católico romanos, precisam ser vistos em seu contexto histórico”. E mais importante ainda: a animosidade tresloucada e temporária de Lutero para com os judeus não tinha motivos racistas. Como assim? Citando historiadores, Lindberg lembra: “Lutero identifica um judeu por suas crenças religiosas, e não por sua raça. A identificação de um judeu por sua raça é, em qualquer caso, um conceito estranho ao século 16. Se um judeu se convertia ao cristianismo, tornava-se um irmão ou irmã em Cristo. Já para o anti-semitismo racial, a crença religiosa é em grande parte irrelevante. Não obstante, as afirmações hostis de figuras do Renascimento e da Reforma muito provavelmente parecerão ainda mais terríveis hoje em dia, vistas sob o pano de fundo de Auschwitz, do que quando foram feitas originalmente”.
Moral da História: aprendamos com os erros e acertos dos reformadores. Seus erros nem devem ser esquecidos nem também devem diminuir a importância do que os reformadores fizeram sob a graça e a inspiração divinas.
Comemoramos os 500 anos, ainda assim existem os mesmo pensamentos contrários as mudanas com mais de tres mil e tantas crenças e seitas sem se firmarem em Cristo Jesus ou se converterem ao cristianismo e viver na ordenança do Senhor.